Fazer um grande vinho era ofício de poetas. Hoje, é dos enólogos. A crítica feita por Aimé Guibert, fundador da vinícola Daumas Gassac, de Languedoc, França, resume a tensão entre tradição e modernidade que alicerça o documentário Mondovino, do americano Jonathan Nossiter, em cartaz no Rio de Janeiro e em São Paulo. Com 130 minutos de duração, o filme faz incursões por vinhedos da França, Itália, Argentina e do Brasil e alerta para a iminente padronização do produto, uma espécie de “enoglobalização” provocada pelo avanço de um modelo criado nos Estados Unidos e encabeçado por empresas como a Mondavi, que partiu da Califórnia para estender seus domínios por lavouras da Toscana, na Itália, e Bordeaux, na França. Segundo o filme, quem assume o comando da estratégia é o enólogo Michel Rolland, que presta consultoria a mais de 100 vinícolas e as transforma em campeãs de venda. “Muitos vinhos atuais são belos e encorpados, mas não têm identidade. São como seios com silicone. Gente como Michel Rolland tem transformado o vinho em um Frankenstein de consumo fácil”, critica Jonathan Nossiter. Casado com uma brasileira e pai de gêmeos recém-nascidos, o diretor aprecia os vinhos nacionais, que, segundo ele, ainda não sucumbiram à mesmice. “Há desde marcas muito boas que buscam esse paladar internacional, caso da Miolo, até vinhos de ótima qualidade que preservam sua identidade, como os da Casa Valduga”, considera.

Há três anos, a Miolo contratou a consultoria de Michel Rolland, aliado no desenvolvimento de vinhos top como o Lote 43, apontado como um dos cinco melhores tintos nacionais. Em julho, ele virá ao Brasil para lançar a safra 2002 do produto. “Michel é obcecado por qualidade. Dizer que ele não respeita terroir (particularidades geográficas de cada região) é uma mentira. Ele apenas não
aceita que o terroir sirva de justificativa para um vinho caro de má qualidade”,
defende Adriano Miolo.

Quase linchado – De acordo com pesquisa da Exponor, organizadora da ExpoVinis – grande feira de vinhos realizada em São Paulo na última semana –, foram apreciados mais de 55,8 milhões de litros no ano passado, cerca de 10% mais do que em 2003. Isso demonstra que o brasileiro está cada vez mais familiarizado com a bebida. “O gosto do consumidor é soberano. Vinhos prontos para beber, que não precisam de envelhecimento, são mais leves e frutados e conquistam o consumidor de primeira viagem. A maioria das empresas tem seguido essa receita”, explica Carlos Cabral, dono da carteira número 1 da Sociedade Brasileira dos Amigos do Vinho, a mais antiga entidade especializada na bebida no País, que comemora 25 anos. Para ele, o que falta é patriotismo. “Você acha que os vinhos californianos são tudo o que eles dizem? Não. A diferença é que o americano defende seu produto. Aqui, quando eu sugiro um nacional para ser servido em um casamento, sou quase linchado”, diz.

Consultor do Pão de Açúcar, com 17 milhões de garrafas vendidas em 2004, Cabral ensina aos atendentes de vinho da rede (responsáveis por sugerir rótulos e solucionar dúvidas dos clientes) a descrever o vinho sem esnobismo. Enquanto os produtores se dividem entre os regionalistas e os globalizados, outra guerra se trava nos bastidores da produção: o combate aos enochatos. “A moda do vinho criou o enófilo, que aprecia a bebida, e o enochato. O ritual não pode limitar o prazer. Já pensou alguém ganhar uma garrafa e não abrir porque não tem a taça correta? Sou a favor de que ele use o copo de requeijão e, se não tiver, beba no gargalo”, diz Cabral. Nossiter, que além de cineasta é especialista em vinhos, vislumbra a maturidade como redentora da chatice: “Da mesma forma que o adolescente possui uma linguagem complicada e quer aparentar conhecimento, o iniciante em vinho esconde-se por trás do esnobismo. Felizmente, a maioria chega à idade adulta.”