Abuso de poder: paramilitares são acusados de manipular o medo e restringir a liberdade

Quem chega ao Rio de Janeiro pela avenida Brasil se espanta com os imensos complexos de favelas, do lado direito, como um mar de pobreza em torno da Igreja da Penha. Uma delas é a Vila Cruzeiro, que expôs a crueldade do tráfico em 2002, com a tortura e morte do jornalista Tim Lopes. Ali, como na maioria das áreas dominadas pelo tráfico de drogas, a imprensa não circula. Na quarta-feira 10, ISTOÉ esteve em uma favela vizinha, onde quem não entra é traficante. As regras são ditadas por policiais fora de serviço e à paisana, que há um ano expulsaram o tráfico, encerrando um período de tiroteios constantes entre facções criminosas. É uma milícia, como são chamados os grupos paramilitares que já dominam quase 100 favelas da cidade.

Cada milícia é formada por cerca de 30 pessoas. Em comum, têm a luta pelo direito de morarem com suas famílias no lugar onde nasceram. Quando entraram na PM, esses milicianos tinham de esconder sua condição, mas foram sendo descobertos e expulsos pelos traficantes. “Eu saí com a roupa do corpo, com cinco fuzis na cabeça”, conta um dos líderes. Aos poucos, planejaram a volta à favela natal, com a ajuda dos moradores. No dia D, dezenas de traficantes foram mortos. “Depois do banho de sangue, os corpos foram carbonizados ou jogados na Baía de Guanabara”, reconhece um miliciano que, obviamente, não quer ser identificado. Como a favela é estratégica para as facções, por ter ruas de fácil acesso aos consumidores de drogas, três tentativas do tráfico de recuperar a área foram rechaçadas. Nesta comunidade, todos os milicianos são da PM e, na folga, montam o policiamento ilegal, com walk-talkies e munição doados por comerciantes e políticos, alguns deles envolvidos com o jogo do bicho.

Com a chegada da milícia, em um ano o preço de um apartamento de dois quartos no centro da comunidade passou de R$ 3 mil para R$ 20 mil, o que dá uma rápida dimensão do rombo provocado pelo narcotráfico na economia do Rio de Janeiro. O presidente da associação de moradores, antes obrigado a conviver com o tráfico, relata a visita insólita que recebeu de um morador há dois anos. “Ele perdeu dois filhos na guerra do tráfico. Me entregou as chaves de dois apartamentos e sumiu.”

Os milicianos assumiram o lugar do tráfico, porém, também cometem abuso de poder nas favelas do Rio. Geralmente obrigam moradores e comerciantes a pagar pela segurança ilegal, exploram serviços clandestinos de transporte, gás e TV a cabo. Como todo poder tomado à força resulta em autoritarismo, as milícias manipulam o medo e restringem as liberdades. A punição para quem fuma
maconha na rua pode resultar em surra, expulsão ou até morte. Por tudo isso, o discurso do governo é o de que milicianos e traficantes devem ser combatidos
com o mesmo vigor.

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A tese soa bem às entidades de defesa dos direitos humanos, mas não esconde a hipocrisia: não há, segundo a Secretaria de Segurança, um único miliciano preso. Na guerra do Rio, as ruas não seguem as orientações dos gabinetes. “É claro que temos o apoio da corporação. Estamos do mesmo lado”, diz um miliciano. O governo também sabe que, se neutralizar as milícias, seu braço bastardo, não poderá manter policiamento uniformizado 24 horas por dia nas favelas. “Durmo com medo de o tráfico voltar e acabar com a paz”, conta a vendedora de uma loja de bijuterias que há seis meses dorme com janelas abertas.

Um garçom cearense interrompe sua caminhada ao esbarrar com a equipe de ISTOÉ. Falante, com uma gaiola nas mãos, conta que, ao chegar de madrugada,
não mais encontra bandidos com metralhadoras nas ruas. “Meu cafofo vale muito mais e as crianças brincam até tarde. Isso não tem preço, meu filho, a comunidade ganhou vida”, diz. Aos poucos, a equipe é cercada por moradores. Eles não aceitam ser fotografados, por medo de represálias caso o tráfico volte, mas falam sem
parar. “Eu me mudei porque não queria meus filhos vendo cocaína e fuzil. Agora quero voltar porque aqui virou um pedacinho do céu, mas os preços dispararam”,
diz uma cabeleireira.

O depoimento da tia de um garoto de dez anos que levou um tiro na cabeça num combate entre gangues ajuda a entender por que o governo faz vista grossa para as milícias. O menino não controla os movimentos de metade do corpo. “Toda semana uma facção invadia o morro e era só tiroteio. Ninguém saía de casa depois do final da tarde”, diz a tia. São oito horas da noite, as crianças correm pelas ruas e soltam pipas. Há barulho de tiros de fuzil ao longe, mas ninguém se assusta. Vem dos lados da Vila Cruzeiro.

A reunião entre os governadores do Sudeste na terça-feira 9, no Rio de Janeiro, causou apreensão entre os que temem a volta das disputas políticas na discussão da segurança pública. No Palácio Laranjeiras, os governadores de Minas Gerais, Aécio Neves, e São Paulo, José Serra, do PSDB, criticaram o governo Lula pela escassez de verbas e cobraram investimentos. O anfitrião, Sérgio Cabral (PMDB), também recebeu Paulo Hartung (PMDB), governador do Espírito Santo, e o prefeito do Rio, Cesar Maia (PFL). O governo reagiu garantindo que a previsão de gastos no setor para 2007 será maior que 2006. A ministra Dilma Rousseff chancelou a intenção de o governo federal se juntar aos governadores com mais “ênfase no gasto com a segurança pública”. Durante a reunião do Rio, o interior de Minas Gerais foi alvo de bandidos. Eles atacaram quatro cidades, assaltaram seis agências bancárias e fizeram quase 20 reféns. Houve três mortes. Na próxima semana devem chegar ao Rio os primeiros homens da Força Nacional de Segurança. Tomara que não fique só no discurso.

Tasso Marcel/AE

União: governadores do Sudeste e o prefeito Maia (à dir.). Pacto inédito


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