DETERMINADA Carlota iniciaria a vida sexual com dom João aos 14 anos, ou antes, se ela quisesse. Não quis.

O livro Carlota Joaquina – cartas inéditas (Casa da Palavra, 408 págs., R$ 55) assume uma difícil tarefa: mudar a imagem da polêmica princesa que entrou para a história como briguenta, egoísta, devassa, irascível e traidora, além de muito feia. A aparência física, entretanto, é um detalhe que não interessa à obra organizada pela historiadora Francisca L. Nogueira de Azevedo. O conflito entre o que se costuma ler sobre Carlota Joaquina e o que é mostrado agora está na personalidade da protagonista. A princesa, nessa abordagem, estaria mais para uma Cécilia Sarkozy, a ex-primeira-dama francesa dona-do-próprio-nariz, do que para a bruxa que vivia amaldiçoando o Brasil, atormentando o marido, os filhos e a quem mais lhe desse na telha. O retrato que se forma pelas cartas é o de uma mulher politizada e influente, uma transgressora com personalidade própria.

Carlota Joaquina de Bourbon era a filha primogênita do rei da Espanha Carlos IV e de dona Maria Luísa Teresa de Bourbon. Nasceu em Aranjuez, na Espanha, em 25 de abril de 1775, mas viveu em Portugal e no Brasil. Como era costume na época, foi casada com apenas dez anos de idade e através de procuração com o príncipe de Portugal dom João, como parte de um acordo entre os dois países. Foi feito um ato adicional ao contrato de casamento fixando que ela iniciaria a vida sexual com o marido aos 14 anos ou antes, se quisesse. Ela não quis, e tampouco admitiu contato físico na noite de núpcias, quando, segundo a lenda, teria agredido o marido com uma dentada. Dom João tornou-se príncipe regente e depois rei de Portugal, com o nome de dom João VI. O casal viveu junto e às turras durante 36 longos anos. Tiveram nove filhos, mas, segundo consta, alguns (talvez cinco) não teriam o DNA do marido. Um dos filhos legítimos, Pedro, viria a ser imperador do Brasil.

O livro faz parte do calendário oficial das comemorações antecipadas dos 200 anos da chegada de dom João e a família real ao Rio de Janeiro – aqui desembarcou em março de 1808. São 145 cartas enviadas e recebidas de amigos, familiares e políticos. De imediato, as missivas ressaltam a enorme diferença entre a comunicação nos tempos atuais e naquela época, em que obter e enviar notícias era tarefa lenta e aflitiva. As cartas passavam por diversas mãos e podiam facilmente ser violadas. Chamou a atenção da historiadora o fato de Carlota ter recorrido a códigos secretos (numéricos, por exemplo), para evitar que o teor de determinadas correspondências pudesse ser lido por terceiros. "Encontrei, em um arquivo em Madri, uma carta decifrada. E outra fechada em forma de flor e entrelaçada de tal forma que se tentássemos abri-la seria rasgada", conta Francisca. Embora afirme que não faz "um desenho do perfil de Carlota" e que deixa para o leitor as conclusões sobre a trajetória e vida da personagem, a historiadora arrisca uma interpretação própria. "Acho que podemos considerar que Carlota Joaquina representou uma certa vanguarda, principalmente no que se relaciona ao espaço feminino. Politicamente, porém, foi muito conservadora."

Ao falar sobre si, Carlota Joaquina obrigatoriamente fala do contexto social e político à sua volta, já que nasceu e viveu entre reis. A revolução francesa e a crise gerada por ela aparecem em alguns desabafos, assim como o processo de realinhamento de toda a Europa. Quando atua para que Portugal não seja invadido, ela usa a prerrogativa de filha; quando relata sua profunda crise conjugal, acaba falando, também, do que ficou conhecido como a conspiração dos fidalgos, "a dissidência entre Carlota Joaquina e o gabinete de dom João", que culminou em disputa de poder. A vinda para o Brasil foi a salvação da família real: seis meses após desembarcarem, ela ficou sabendo que Napoleão invadira a Espanha e prendera seus familiares. Mesmo assim, ao deixar o País, em 1821, Carlota Joaquina teria tirado os sapatos no navio para limpar as solas porque não queria levar nem a poeira daqui. A julgar pelo conteúdo das cartas publicadas agora, pode ser que muito do que se conta sobre essa mulher não passe de estereótipo.

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