Após se reinventar como maestro, o pianista se dedica à inclusão social, mas ainda sofre os efeitos de uma desastrada experiência política

chamada.jpg
INVESTINDO NO FUTURO
Fundação de Martins atende 800 estudantes

A trajetória do maestro João Carlos Martins, 69 anos, é uma sucessão de altos e baixos. Depois de ganhar fama como um dos maiores intérpretes do compositor alemão Johann Sebastian Bach (1685-1750), Martins teve de se afastar do piano por problemas físicos.

img1.jpg
"Num ensaio como maestro em Londres, comecei a fazer xixi nas calças
de tão nervoso. Pensei: Meu Deus, que vergonha"

Determinado a ser secretário de Cultura de Paulo Maluf, candidato ao governo de São Paulo em 1990, acabou virando notícia pelas irregularidades na arrecadação de doações de campanha. “Não me conformo de ter ido para a política”, diz Martins. “Não roubei, não meti a mão em nada, mas ficou a marca.”Mesmo estigmatizado, ele voltou à música como maestro. Estava havia seis meses na regência quando um adolescente, violinista talentoso, pediu-lhe R$ 10 para comprar comida. Decidiu então criar uma versão jovem de sua orquestra, a Filarmônica Bachiana Sesi SP, e investir no resgate de pessoas. Parte do princípio de que, se ele conseguiu se reerguer, precisa fazer o mesmo pelos outros.

img2.jpg
"Até o dia da minha morte vou ter de administrar o problema da campanha do Maluf.
E isso me machuca todo santo dia"

ISTOÉ

Como o sr. se tornou maestro?

João Carlos Martins

Tive um sonho com o Eleazar (o maestro Eleazar de Carvalho, falecido em 1996). E começaram os dias mais emocionantes de minha vida. Estava com uma deficiência física. Não podia segurar a batuta nem virar páginas. Tinha de decorar tudo. Sabia que, como maestro, eu nunca teria a gesticulação daquele que estudou regência desde os 20 anos. Mas decidi: “Vou fazer música. E a orquestra vai suar.” No primeiro ensaio com a English Chamber Orchestra, em Londres, na hora em que baixei a mão, eu notei um sorriso nos músicos. Pensei: “Mas eu sei fazer Bach.” Comecei a fazer xixi nas calças de tão nervoso. Pedi licença, fui para o toilete e pensei: “Meu Deus, que vergonha.” Então olhei no espelho e disse: “Vou fazer estes músicos me respeitarem”. Voltei. Quando acabamos, um dos músicos levantou e falou: “Daqui por diante, a gente vai fazer Bach do jeito que o sr. faz.” Então tive coisas muito fortes.

ISTOÉ

O que o sr. fez?

João Carlos Martins

Criei uma fundação. E comecei a resgatar pessoas. Por isso, fiz a minha orquestra jovem. Eu estava na regência havia seis meses quando um garoto que estudava violino, o Wagner de Souza, chegou e disse: “Ô maestro, me arruma R$ 10.” Eu perguntei por que deveria dar o dinheiro e ele respondeu que estava com fome. Eu falei: “Você tem um grande talento. Vou formar uma orquestra jovem e você vai ser o spalla (o primeiro violino) dos meus meninos. Nunca mais na vida você vai me pedir R$ 10.” E dois anos e meio depois ele estava sentado no Carnegie Hall, tocando comigo.

ISTOÉ

Como atua a fundação?

João Carlos Martins

Tenho 800 jovens estudando música em núcleos nos Estados de São Paulo, Minas Gerais e Espírito Santo. A metodologia é simples. Esses jovens estudam música três horas por dia.

ISTOÉ

Para popularizar sua obra, o sr. já deu concerto até com DJ.

João Carlos Martins

Nos últimos três anos, a Bachiana se apresentou para 900 mil pessoas em salas fechadas, dois milhões em concertos ao ar livre. Mesmo quando levo DJ, na primeira parte o repertório é sempre clássico. Na segunda é popular. E o retorno é ótimo. O Maguila (o ex-pugilista) veio falar comigo depois de um concerto. Achou Beethoven lindo. E, em cada concerto em favela, que acaba às 11 horas, eu fico até as duas da tarde dando autógrafo. Não deixo a imprensa ir porque vão achar que é marketing.

ISTOÉ

O sr. também planeja levar a música erudita para o Carnaval?

João Carlos Martins

No ano que vem, Bach vai pisar no sambódromo. É que a Vai-Vai (escola de samba paulistana) decidiu contar minha história.

ISTOÉ

Qual a marca dessa trajetória?

João Carlos Martins

A da superação. Dos 8 aos 26 anos, eu fui um leão no palco. Dos 26 aos 62 anos, eu tremia, mas entrava em palco. Se eu não enfrentasse as adversidades, teria abandonado a música aos 26 anos.

ISTOÉ

Foi quando o sr. se machucou, jogando futebol em Nova York.

João Carlos Martins

Houve uma lesão no nervo da mão direita. Para outro pianista, teria sido o fim da carreira. Insisti até os 30 anos. Mas eu achava que só podia ser pianista. Não entendia que tinha nascido para ser músico. E foi falta de maturidade. Abandonei a música durante alguns anos.

ISTOÉ

E neste primeiro período fora da música, o sr. fez o quê?

João Carlos Martins

Fui empresário de boxe, inclusive do Éder Jofre. Quando ele recuperou o título mundial para o Brasil, aos 37 anos, e o juiz levantou o braço dele, pensei que eu era um covarde.

ISTOÉ

O sr. voltou então ao piano?

João Carlos Martins

Comecei a estudar de novo. Percebi que se eu não usasse o dedo afetado e compensasse com os outros dedos teria a mesma performance. E fiz carreira durante mais oito anos.

ISTOÉ

Dos 37 aos 45 anos?

João Carlos Martins

Isso. Mas, pela mudança de posição de mão, acabei adquirindo a Lesão por Esforço Repetitivo, a LER. Então parei e achei que poderia ser empresário. Resolvi levantar a Paubrasil, a firma de construção e manutenção de um vizinho meu, que estava concordatária. A empresa cresceu, mas, do ponto de vista tributário, era uma tremenda desorganização.

ISTOÉ

Por que o sr. decidiu entrar na campanha de Paulo Maluf para o governo?

João Carlos Martins

Fiquei com a perspectiva de me tornar secretário da Cultura e fazer uma revolução cultural. Entrei na campanha com tudo. Como pensava em acabar com a Paubrasil e começar outra empresa mais organizada, dei nota fiscal para todo mundo que contribuiu para a campanha. A minha sorte é que também paguei os fornecedores com notas fiscais. Na época, pessoas jurídicas não podiam contribuir para campanhas políticas. E uma construtora não podia dar nota fiscal para campanha. Quando estourou o escândalo, eu tinha 17 mil documentos da campanha. Na auditoria, dos US$ 19 milhões arrecadados, só não conseguimos comprovar US$ 25 mil. Ganhei no Supremo por nove a zero.

ISTOÉ

De qualquer maneira, era um caixa 2.

João Carlos Martins

Era um caixa 2, mas com tudo documentado.

ISTOÉ

O seu nome foi para a lama.

João Carlos Martins

Foi para a lama. Por sorte eu assinei para receber e assinei para pagar. Ganhei no Supremo, mas o mal já tinha sido feito. Moral da história: ganhei no criminal, mas vou ter de administrar isso até o dia da minha morte. Na alma. E isso me machuca todo santo dia.

ISTOÉ

Como isso afetou sua carreira?

João Carlos Martins

Voltei estigmatizado para a música. No Brasil, a crítica dizia que eu não tocava bem. Mas a crítica nos Estados Unidos e na Europa me colocava lá em cima.

ISTOÉ

E como é hoje o seu relacionamento com Maluf?

João Carlos Martins

Cada um seguiu o seu caminho. Vi o Maluf três vezes. Em dois velórios e em um casamento. A única mágoa é que, quando ele era prefeito e eu queria me apresentar de novo, liguei para o Konder (o então secretário de Cultura Rodolfo Konder) e para a secretária do Maluf, dizendo que queria fazer a minha volta no Teatro Municipal. Nem atenderam o telefone. Meu retorno acabou sendo no Carnegie Hall. Foi sorte até. Em vez de voltar em São Paulo, voltei em Nova York.

ISTOÉ

Como foi essa segunda volta?

João Carlos Martins

Acabei a gravação das obras completas do Bach. Depois de alguns anos sem exercer a função, meus movimentos foram recuperados. Estava tocando para valer, mas então veio o assalto na Bulgária.

ISTOÉ

E o sr. levou uma pancada durante esse assalto.

João Carlos Martins

Faltavam só quatro CDs para terminar a gravação. Fui para o Jackson Memorial, em Miami, para recuperar os movimentos da mão. Um ano depois, estava fazendo 21 notas por segundo numa escala, com a mão direita. A esquerda estava perfeita. Então veio o momento mais dramático da minha vida. A cada palavra que eu falava, eu tinha um espasmo. E a dor foi aumentando. Tive que cortar um nervo para acabar com a dor. Comecei então uma carreira com a mão esquerda.

ISTOÉ

Como foi?

João Carlos Martins

Eu já estava tocando na Europa, na Ásia, mas apareceu um tumor na mão esquerda. Operei e nunca mais recuperei a mão esquerda.

ISTOÉ

Em algum momento o sr. procurou ajuda fora da medicina?

João Carlos Martins

Na época que estava com problema na mão direita, fui muito à igreja. Mas nem eu merecia o milagre nem o milagre poderia ser feito. Eu não tinha mais músculo. Daí fui a um pai de santo. Ele me examinou e falou: “Não se preocupe. Em um ano sua mão vai estar igualzinha à outra.” Logo depois, tive o problema com a esquerda. Não posso dizer que ele mentiu (risos).

ISTOÉ

O sr. é um homem rico?

João Carlos Martins

Hoje não tenho 10% do que tinha em 1970. Na época, eu morava na 5a. Avenida, em Nova York. Hoje não tenho 10%, mas sou mil vezes mais feliz. Eu tenho salário. Não recebo cachê, vai tudo para a fundação.

ISTOÉ

Mas dá para ter carro novo…

João Carlos Martins

É outra história. Numa entrevista, disse que estava tão ligado na música que não precisava de carro novo nem de gravatas. E eu já tive carros bárbaros e coleção de gravata. Em seguida, o Pinheiro Neto (ex-vice-presidente da GM) me mandou uma Captiva. Com todos os dispositivos, até a placa de deficiente.

ISTOÉ

Como será sua participação na campanha eleitoral deste ano?

João Carlos Martins

Sou amigo da Marina Silva, que telefonou duas vezes para mim em Nova York, depois de meus concertos. Sou amigo do José Serra, que outro dia ficou emocionado com o meu “Hino Nacional”. E a Dilma Rousseff assistiu a um concerto meu e também ficou emocionada. Hoje eu não me envolvo em política, mas sou agradecido ao Lula. Depois do Getúlio Vargas, ele foi o primeiro presidente a trazer a música para as escolas. Será a partir de 2011. Tenho certeza de que, com a volta da música nas escolas, a criminalidade vai diminuir.

ISTOÉ

Quando o sr. conheceu o presidente Lula?

João Carlos Martins

Toquei no aniversário dele, em outubro. Conheci o presidente naquele dia. E aí eu vi o carisma dele. Quando acabou o concerto, tinham de tirar o piano e vieram os carregadores. E ele falou: “De carregar piano eu entendo, maestro. Deixa que eu empurro.” E foi ele quem tirou o piano.