WELLINGTON CERQUEIRA/AG. ISTOÉ

PRECISÃO Eduardo Vicente, do Centro de Química e Rotulagem do Ital, em Campinas (SP), avalia a integridade dos produtos

Foi a gota de leite que faltava para transbordar a paciência do consumidor. Na quinta-feira 8, o Departamento de Proteção e Defesa do Consumidor (DPDC), do Ministério da Justiça, determinou a abertura de processos administrativos contra seis empresas por apresentarem informações incorretas nas embalagens de leite integral longa vida e leite em pó. Uma análise da composição dos produtos mostrou níveis de gorduras, proteínas, carboidratos e acidez em desacordo com o rótulo e em proporções acima das toleradas. Cinco dias antes, uma pesquisa do Instituto Nacional de Metrologia (Inmetro) revelou que, de oito marcas de pães analisadas, nenhuma poderia ser considerada light ou diet, como informado na embalagem. Os episódios foram os mais recentes de uma longa série de notícias desairosas para o consumidor sobre irregularidades de vários quilates nos alimentos. O brasileiro ainda está atônito, por exemplo, com a divulgação de que cooperativas mineiras adicionaram soda cáustica e água oxigenada ao leite. Mas também já foram apontados problemas em cereais matinais, azeites, sopas prontas, cachaças e muitos outros produtos. Diferentemente do caso do leite com soda cáustica, descoberto pela Polícia Federal, a maioria das irregularidades é levantada por entidades independentes de defesa do consumidor, como o Idec e a Associação Pró-Teste. É dessa última organização uma análise que acaba de ser feita com sete marcas de barras de cereais, totalizando 12 produtos. Entre os problemas encontrados, há teor calórico acima do descrito na embalagem e quantidade de fibras menor do que o anunciado. No rótulo da Nutry banana, por exemplo, constava que o produto tinha 1 grama de fibra por porção (25 g), mas foi encontrado apenas 0,62 grama de fibra em cada barra. A Nutrimental, fabricante do produto, questiona a metodologia usada nos testes e argumenta que a rotulagem está de acordo com a lei.


ALTERAÇÃO Em laticínios como o Vale do Curralinho, no Distrito Federal, as equipes de fiscalização deverão mudar a cada mês

O fato é que, em matéria de controle de qualidade dos alimentos, o Brasil está em desvantagem. Um índice criado pelo Idec revelou que 33% dos 1.990 produtos alimentícios examinados em 81 testes realizados nos últimos 17 anos não atendiam às normas mínimas. Na história da Pró-Teste, o quadro não muda. Nos últimos cinco anos, a organização testou mais de 200 produtos. “A metade não tinha qualidade adequada para consumo”, afirma Maria Inês Dolci, coordenadora institucional da Pró-Teste. O mesmo cenário emerge dos testes feitos na Universidade Estadual de Campinas, em São Paulo, em um laboratório criado para desenvolvimento de tecnologias de análises de alimentos. “Avaliamos mais de 50 categorias de produtos. Em todas havia variações em relação ao rótulo e, em diversos casos, adulteração do alimento”, diz o farmacêutico Rodrigo Catharino. Na opinião de Marilena Lazzarini, dirigente do Idec, a situação é preocupante. “Em países como Holanda e Estados Unidos, é raro encontrar essas inconformidades em análises de rotina”, diz.

O pior é notar que essas alterações aparecem em produtos de marcas internacionais. “Como a nossa legislação mostra mais liberalidade, as indústrias se comportam de modo diverso. Um exemplo é a gordura trans, já banida de outros países, mas ainda presente em diversos produtos”, diz Marilena. É exatamente nessa adequação entre regulamentos daqui e de fora que repousa outro ponto de atrito constante. “Muitos dos corantes e conservantes aqui usados estão proibidos em outros países porque existem estudos científicos demonstrando efeitos nocivos”, diz Sezifredo Paz, presidente do Fórum Nacional de Entidades Civis de Defesa do Consumidor. Uma das vitórias mais comemoradas nesse campo foi a suspensão do carbadox, em 2005, depois de sete anos de batalha. A substância antibiótica era utilizada nas rações de suínos. No entanto, tem efeitos carcinogênicos em humanos. A União Européia já havia proibido o composto em 1998.


ROTINA Maria Inês faz testes mensais de alimentos

Nesse pantanoso terreno, porém, há situações que não se caracterizam como fraudes explícitas, como o caso do leite, mas são tão delicadas quanto. Um exemplo é o caso das manteigas. Uma donade- casa que compra um tablete pensando tratar-se de manteiga, se não prestar atenção pode comprar gato por lebre. Há marcas que imprimem na embalagem o nome “manteiga”, mas oferecem uma mistura de leite com gordura de origem vegetal. “Não pode. Manteiga deve ser feita puramente de leite”, informa Nelmon da Costa, diretor do Departamento de Inspeção de Produtos de Origem Animal do Ministério da Agricultura.

Se não pode, por que acontece? Onde estão as falhas que permitem a venda dos produtos adulterados ou enganosos? As respostas são bem complexas. Há, é claro, a engenhosidade dos fraudadores. Tome-se como exemplo a soda cáustica no leite. “Primeiro, eles cometeram uma fraude ao colocar soro no leite para fazê-lo render mais. Depois, fizeram outra ao adicionar soda para corrigir a acidez provocada pelo soro”, afirma Jorge Rubez, presidente da Associação Brasileira de Produtores de Leite. Mas, neste caso, há outros obstáculos possíveis à qualidade. “Qualquer problema durante a obtenção, armazenamento e transporte pode resultar no comprometimento do leite”, explica Leorges Moraes da Fonseca, do Laboratório de Análise da Qualidade do Leite da Universidade Federal de Minas Gerais. Segundo o especialista, entre os principais problemas dessa cadeia estão a falta de higiene durante a ordenha, deficiências no transporte da fazenda à usina por causa da precariedade das estradas e limitações no fornecimento de energia elétrica para propriedades leiteiras em diversas regiões do País. “A refrigeração é essencial para a qualidade”, diz Fonseca. Um dos agravantes na contenda do leite é que sua contaminação por soda cáustica, por exemplo, pode deteriorar vários outros produtos dos quais ele é a matéria-prima.


BRIGADA À esq., Coscarelli (Inmetro), Morishita (Ministério da Justiça), Marilena (Idec) e Pfeiffer (Procon) juntos pelo recall

No entanto, era de esperar que os produtos fraudados ou enganosos nem chegassem aos supermercados se o País contasse com um sistema eficiente de fiscalização. Há quem considere que a vigilância só funciona com mais rigor para os produtos que vão para fora do Brasil. “A fiscalização brasileira é mais eficaz para alimentos exportados”, observa Jorge Mancini, professor do Departamento de Alimentos e Nutrição Experimental da Universidade de São Paulo.

Mas a questão envolve a própria estrutura desenhada para a fiscalização. O órgão responsável pela liberação e fiscalização dos produtos de origem animal é o Ministério da Agricultura. Até agora uma das formas de trabalho era manter fiscais fixos nos locais a serem inspecionados. “É como colocar a raposa no galinheiro”, diz Marilena Lazzarini. Mas a crise do leite precipitou uma revisão nesse sistema. O Ministério anunciou o fim do modelo regionalizado de inspeção. A partir de agora, os 212 fiscais irão se revezar entre os 1,7 mil estabelecimentos. “A fiscalização passa a ser aleatória. Um Estado vai inspecionar outro”, diz Costa.

Já os alimentos que não são de origem animal estão sob responsabilidade da Agência Nacional de Vigilância Sanitária, a Anvisa, ligada ao Ministério da Saúde. Alguns têm registro obrigatório, como os diet, light e com finalidades especiais. Precisam passar por diversos testes comprovando sua composição e categoria e ter o rótulo aprovado, um dos itens mais problemáticos. “As irregularidades no rótulo, como a falta de informações fundamentais, são muito freqüentes quando fiscalizamos os pontos-de-venda”, explica Evanise Segala, subgerente da Vigilância Sanitária da Cidade de São Paulo. Contribuem para isso, na opinião do pesquisador Eduardo Vicente, do Instituto de Tecnologia de Alimentos, de Campinas, algumas práticas dos produtores para lidar com a rotulagem. Acostumado a fazer testes de composição de produtos a pedido de empresas, do Inmetro e do Idec, entre outros, ele já viu casos em que o fabricante tem a informação correta, mas não altera a rotulagem porque acha que não vai ser pego. “Deveria haver maior rigor”, afirma.

Uma vez nas prateleiras, a vigilância sanitária municipal, estadual ou federal, o Inmetro, o Procon, o DPDC, o Ministério da Agricultura, o Serviço de Inspeção Sanitária e qualquer órgão público de Defesa do Consumidor podem coletar e até apreender o que estiver em desacordo com a lei. Cada um faz a seu tempo e sem trocar informações. Uma das conseqüências dessa ação descoordenada é que o sistema, como um todo, padece de uma falta de sinergia. O Ministério da Agricultura, por exemplo, fiscaliza a usina e o frigorífico, mas não entra no supermercado. Legisla sobre bebidas, mas as que têm alguma característica funcional – com nutrientes benéficos à saúde – estão sob o guardachuva do Ministério da Saúde. A coordenadora do curso de engenharia de alimentos da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Ana Lúcia Vendramini, levanta outra questão. “A fiscalização pode ser precária, mas onde fica a responsabilidade do empresário? Ele precisa de um fiscal para lhe falar que deve manter o ambiente bem higienizado?”, questiona.

Na verdade, toda essa discussão gerada inicialmente pelo leite adulterado de Minas Gerais está causando um movimento de reação. Parte vem da própria indústria. A Associação Brasileira da Indústria da Panificação, por exemplo, decidiu realizar exames periódicos nos pães comercializados para evitar fraudes. “Precisamos recuperar a credibilidade dos produtos”, afirma Alexandre Silva, presidente da entidade. Já o Ministério da Agricultura anunciou que vai colher amostras de todos os leites pasteurizados e longa vida para exame. O problema é que, se a contaminação estiver no fornecedor, o leite sem pó também pode sofrer com a fraude. Além disso, o governo vetou a comercialização das marcas fora de padrão até que cada empresa apresente um programa de controle de qualidade e sejam feitas novas análises. Outra lição é que andorinha sozinha não decola sobre a crise. Na quinta-feira 8, um encontro pilotado por Costa, do Ministério da Agricultura, com a Promotoria Pública, Anvisa, Procons, vigilâncias sanitárias dos Estados e o DPDC, do Ministério da Justiça, tratou de melhorar a aproximação entre todos esses órgãos. “Rotineiramente, não temos integração muito boa e não nos comunicamos de forma muito articulada. Mas vamos passar a trabalhar dando notícias uns aos outros do que estamos fazendo”, diz Costa.

FABIANO CERCHIARI/AG. ISTOÉ

REAÇÃO Silva anuncia exames regulares do pão

A reação mais vigorosa veio das entidades de defesa do consumidor. A Delegacia do Consumidor do Rio de Janeiro instaurou inquérito para apurar as denúncias envolvendo o conteúdo dos pães. “As empresas serão indiciadas e faremos blitz em pontos-de-venda. Os produtos que não forem recolhidos pelo fabricante serão apreendidos”, promete a delegada Andréa Menezes. Em São Paulo, na terça-feira 6, os representantes dos principais organismos de controle de qualidade e defesa do consumidor do País se encontraram para conversar sobre uma plataforma de ação comum. Lá estavam Procons, Anvisa, vigilâncias estaduais e municipais, Inmetro e Idec para discutir a implementação do recall em vários segmentos, incluindo alimentos. “Essa ação conjunta é fundamental. Precisamos interagir e sair da inércia”, diz Paulo Coscarelli, diretor de qualidade do Inmetro.

A pressão de fato traz resultados. Em uma das análises realizadas pela Pró- Teste com queijos tipo petit suisse, muito consumidos pelas crianças, o Batavinho apresentou quantidades de minerais inferiores ao informado, além de alta concentração de açúcar. A empresa corrigiu a fórmula. De acordo com a Batavo, fabricante do produto, além do ajuste nas quantidades dos minerais, a nova fórmula traz um valor menor de gorduras e açúcar. Não basta as indústrias corrigirem o rótulo de um produto que não entrega o que promete. O que precisa ser feito é produzir alimentos de qualidade. O consumidor brasileiro não é pior que o de outros países onde essa batalha já foi vencida.