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O DESESPERO
A busca por sobreviventes nos destroços de Constitución, a cidade que registrou
o maior número de vítimas fatais

Foi uma experiência medonha, horrorosa, traumática, inenarrável em sua real magnitude. Estava em meu sítio, em Laguna Verde, um lugar no meio das montanhas, 14 quilômetros ao sul de Valparaíso, de onde vejo o Oceano Pacífico. Às vinte para as quatro da manhã acordei com um leve movimento. Tenho sensibilidade (e trauma) para tremores de terra. Vesti uma camiseta, botei chinelos e peguei uma calça pensando em colocála enquanto descia para a sala. Acordei Pola, minha mulher, e forcei o cachorro a descer (está velhinho, coitado, surdo e meio cego). Assim que cruzamos a porta, tudo começou a chacoalhar de uma forma insuportável. Era impossível ficar em pé. Fiquei, a uns dez metros da saída, abraçado a Pola, quase nu, de costas para a casa onde caía tudo: louças, prateleiras, móveis, quadros, até um móvel de cozinha atarracado e baixo.

Às 3h34 da madrugada do sábado 27, um terremoto de 8,8 graus de magnitude na escala Richter atingiu em cheio a região centro-sul do Chile. O epicentro do tremor foi localizado no mar, a 58 quilômetros de profundidade e a 325 quilômetros da capital, Santiago. O abalo, o segundo maior da história do país, tirou da cama a presidente Michelle Bachelet, que correu à sede da Oficina Nacional de Emergência, o órgão de defesa civil chileno.

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O TSUNAMI
Ondas gigantescas arrasaram Pellyhue, balneário localizado a apenas dois
quilômetros do epicentro do terremoto

Pensei que nós seríamos engolidos pela terra, pois rachava aqui e acolá com uma velocidade abismante. As árvores mexiam como se fossem bandeiras num jogo de futebol após o gol. O barulho da terra era paralisante. Foram três minutos de terror. Depois, vieram as réplicas e o medo de voltar para dentro de casa.

No decorrer dos seis dias seguintes, foram mais de 200 réplicas. Duas delas tiveram forte intensidade – 6,6 e 6,2 graus – e espalharam o pânico na sexta-feira 5. Cerca de 1,5 milhão de casas e apartamentos estão danificados. Os desabrigados somam dois milhões. Edifícios inteiros vieram abaixo, pontes ruíram e carros foram lançados para fora das avenidas. A rede elétrica entrou em colapso, criando um efeito cascata que também afetou as telecomunicações e o abastecimento de água e de gás. Uma fenda de 600 quilômetros se abriu no fundo do mar e o movimento das águas provocou um tsunami que devastou o litoral. Barcos foram jogados para dentro de cidades e vilas inteiras de pescadores desapareceram. Ao todo, três ondas gigantes avançaram contra a costa chilena, num intervalo de duas horas, entre as 5h e as 7h da manhã. A Marinha do Chile reconheceu na quartafeira 3 que falhou ao descartar o alerta de tsunami. O governo, por sua vez, chegou a anunciar que havia 802 mortos. Na sexta-feira 5, recuou e divulgou uma relação com os nomes de 279 vítimas fatais já identificadas. Estima-se que haja 500 desaparecidos.

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O SAQUE
A violência dos saqueadores em concepción foi tamanha que, antes da chegada dos
militares, moradores precisaram se armar

A lua cheia me fez enxergar tudo em volta. Foi apavorante ver um grande bosque de pinheiros e os morros se mexendo como se fossem um tapete gigantesco sendo sacolejado. Ficamos dentro da caminhonete até depois do meio-dia, escutando rádios da Argentina que contavam, mais ou menos, o que poderia estar acontecendo no Chile. Muito depois conseguimos escutar rádios chilenas. Eu já havia passado pela experiência de 1985, mas não foi o suficiente para suportar a presença da morte por mais de três minutos.

No dia 3 de março de 1985, um domingo, um terremoto de dois minutos de duração, com 8 graus na escala Richter, atingiu a costa de Valparaíso, deixando um rastro de destruição e prejuízos acima de US$ 1 bilhão. Localizado no chamado “círculo de  fogo”, o Chile integra uma região que concentra 80% dos terremotos do planeta.

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O CAOS
Para conter os saqueadores, que chegaram a provocar incêndios, 14 mil militares foram
mandados para as áreas mais afetadas

Aos poucos tomamos coragem e entramos para limpar a casa. Tiramos uma pilha de mais de um metro quadrado por 30 centímetros de altura de peças quebradas. Toda a louça, garrafas, potes, quadros, tudo o que poderia quebrar, ficou em pedaços. O cheiro estava insuportável: vinagre com orégano, chá, açúcar, café, azeite, cominho. Todos os potes misturados no chão, junto com vinho, pisco e licores que tinha na minha coleção. Deixei passar a loucura que houve nas primeiras horas, já que era o final das férias e todos os que estavam em Viña del Mar e em Valparaíso se voltaram para a estrada 68, que une o litoral a Santiago. Peguei a estrada lá pelas quatro da tarde, quando havia menos confusão.

No aeroporto  internacional de Santiago, todos os voos foram cancelados. O ministro da Justiça chileno, Jorge Toledo, que estava em Brasília participando de um encontro, foi levado a Santiago num avião da FAB. A aeronave trouxe de volta 30 brasileiros que se encontravam no país vizinho. Cerca de cinco mil chilenos, que estavam no Brasil de férias ou a negócios, só conseguiram voltar para casa a partir da quarta-feira 3, quando os voos começaram a ser retomados. Muitos se queixaram da falta de atendimento da LAN, companhia aérea cujo maior acionista é o presidente eleito do Chile, Sebastián Piñera, que toma posse na quinta-feira 11.

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BUSCA
Moradores de Constitución procuram o nome de parentes na relação de mortos, em frente ao necrotério

Na minha casa de Santiago consegui dormir – vestido, claro – e as réplicas eram sentidas mais suavemente do que no sítio. De prejuízo, apenas um vidro gigantesco que tenho na  janela da sala, que se quebrou, e uma parede divisória, que caiu, derrubando livros e DVDs. Em Santiago, o terremoto não provocou nem 10% dos danos registrados em Concepción, 505 quilômetros ao sul da capital. E penso que ainda não se sabe a real magnitude disto que eu chamo, sem temer o exagero, de cataclismo. Cidades grandes e pequenas estavam arrasadas ou em condições precárias, sem luz, sem água nem comunicações, não só telefônicas como também terrestres. Um tsunami arrasou as cidades litorâneas. Ondas gigantescas também passaram como vassoura sobre o arquipélago Juan Fernandez, onde fica a ilha de Robinson Crusoé. Lá, há oito mortos e 20 desaparecidos, entre eles um turista espanhol.

Na ilha de Robinson Crusoé, coube a uma garota de 12 anos impedir que a catástrofe fosse ainda maior. Depois de saber do terremoto por um telefonema, Martinna Maturana notou uma movimentação diferente no mar. Tentou avisar os pais, mas eles não lhe deram atenção. Ela então correu para a praça principal da ilha e começou a tocar o gongo usado para alertas em casos de emergência. O som acordou vários moradores, que saíram de suas casas minutos antes do impacto das ondas. Cerca de 700 pessoas escaparam da tragédia.

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DRAMA
A chilena Dennise Pincochet diante da sua casa destruída

Nos povoados do litoral, mesmo que as autoridades tivessem tomado a decisão de avisar, teria sido em vão, porque não tinham como preparar as pessoas, sem luz, nem radio, nem tevê, nem nada para uma onda que chegou apenas 15 minutos após o terremoto. Os habitantes da Ilha de Páscoa, avisados a tempo, subiram para as partes altas da ilha. As autoridades, lamentavelmente, não tiveram as informações a tempo. Foram superadas pelo cataclismo. Mas também foram mornas no atuar. Isso ficou claro não somente pela absurda decisão de chamar o tsunami de “marejada” como também pela demora em decretar o toque de recolher em Concepción, onde delinquentes promoviam saques até em hospitais.

A presidente Michelle despachou 14 mil militares para as regiões mais afetadas pelo terremoto. Em Concepción, antes da chegada dos militares, os moradores montaram barricadas e, com armas de caça e tacos de beisebol, tentaram conter os saques. O caos generalizado fez com que Michelle decretasse estado de catástrofe nas regiões de Maule e Concepción, além de um toque de recolher. O cenário era de guerra, com dezenas de tanques  e veículos militares percorrendo as ruas. As autoridades policiais confirmaram a prisão de 160 pessoas e a morte de um morador de 22 anos que tentava proteger sua casa dos saques. 

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