A ex-ministra do confisco diz que prefere fundos de renda fixa e avalia que o Brasil está preparado para sofrer menos com a crise financeira americana

Há 18 anos, ela era a mulher mais poderosa do Brasil. Criou um plano de estabilização da economia, que pela primeira vez na história mundial confiscou todos os ativos financeiros de um país da noite para o dia. Não perdoou sequer a caderneta de poupança, o que lhe granjeou enorme antipatia. Zélia Cardoso de Mello tinha, então, 37 anos. Catorze meses depois, deixou o governo Collor. De lá para cá, muita coisa mudou na vida de Zélia. Após longa temporada em Nova York, ela voltou ao Brasil, para que seus dois filhos com o humorista Chico Anysio, um rapaz de 16 anos e uma menina de 14, tenham experiência na terra natal. Vive no Rio, onde representa a consultoria de investimentos Áquila Associates, que opera nos Estados Unidos e na Índia. A ex-ministra analisa a crise de Wall Street, prevê que a economia brasileira “vai sofrer” e ataca o investimento em poupança: “Não recomendo. O rendimento é muito baixo. Prefiro os fundos de renda fixa.”

ISTOÉ – Ao marcar esta entrevista, a sra. disse que não falaria sobre o Plano Collor. Por quê?
Zélia Cardoso de Mel

Passaram-se 18 anos e falei tudo o que devia sobre o Plano Collor. Na comemoração dos 200 anos do Ministério da Fazenda, expliquei que o plano foi muito mais abrangente do que dizem e permitiu a abertura da economia brasileira. Portanto, não se resumiu ao confisco da poupança. Mas a imprensa não entende o que eu digo.

ISTOÉ – A sra. tem algum arrependimento?
Zélia Cardoso de Mel

Arrependimentos tenho vários (risos). Não é essa a questão. Tenho muito orgulho de ter participado de uma fase tão importante na vida brasileira. Como economista, sinto-me privilegiada de ter podido fazer mudanças que vinha discutindo na minha vida acadêmica, por tantos anos. Foi um privilégio, ou uma sorte.

ISTOÉ – Qual a sua opinião sobre o ex-presidente Collor?
Zélia Cardoso de Mel

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É um homem que teve muita coragem. Muito inteligente, muito sagaz. Percebeu que o Brasil precisava de mudanças e estava disposto a enfrentar isso.

ISTOÉ – E seus arrependimentos?
Zélia Cardoso de Mel

É claro que, na administração, é inevitável cometer erros. Você olha retrospectivamente e vê que poderia ter feito algo de maneira diferente.

ISTOÉ – E a sra. era bem jovem. Tinha apenas 37 anos.
Zélia Cardoso de Mel

Eu continuo jovem. Eu era mais jovem. Não é que haja arrependimento de coisas terríveis, mas muitas coisas eu teria feito de maneira diferente. Acho que a inexperiência política foi um fator determinante. Houve erros na negociação com o Congresso, mas principalmente na questão da comunicação. Não quero responsabilizar ninguém. Eu também errei. Na comemoração dos 200 anos da Fazenda, o ministro Mantega disse-me que usou, nas aulas dele, a minha fala inicial explicando o plano como exemplo de problemas de comunicação.

ISTOÉ – O que saiu errado?
Zélia Cardoso de Mel

A apresentação inicial do plano foi uma tragédia. Foi muito ruim. Eu não dormia havia três noites. Estava muito cansada. Quando acabou aquilo, o presidente Collor me chamou e falou: “Nós temos de explicar isso direito, porque está horrível.” Então, passei três dias dando entrevistas a todos os canais de televisão.

ISTOÉ – A sra. continua a acreditar que o confisco dos ativos financeiros era necessário?
Zélia Cardoso de Mel

Naquele momento, da maneira como estava estruturado o esquema de aplicações financeiras no Brasil, não havia alternativa. Mas é difícil fazer essa análise hoje. Como dizia minha mãe, o general “se” morreu na guerra. Infelizmente, não é como uma gravação de filme, em que se rodam duas cenas para ver como é que fica.

ISTOÉ – A opinião pública reagiu contra o confisco das cadernetas de poupança. Também era inevitável?
Zélia Cardoso de Mel

Inicialmente, o objetivo não era atingir a caderneta de poupança. Ocorre que havia muito boato, muitos rumores. E houve uma migração de aplicações muito grande para a poupança. Isso é um fato. Por isso, a medida foi mais abrangente.


ISTOÉ – A sra. sente falta do poder?
Zélia Cardoso de Mel

Não sinto. Só quando estou tentando educar meus filhos. Aí, eu precisava de mais poder. Indiscriminado.

ISTOÉ – Mas a sra. se considera uma precursora? De certa forma, foi aberta uma porta para as mulheres?
Zélia Cardoso de Mel

Acho que sim. Houve uma mulher no Executivo antes de mim, a ministra da Educação, Ester Figueiredo Ferraz (1982-1985). Mas era num setor diferente, em outras circunstâncias. O fato de eu ter sido ministra naquele momento e ter tomado medidas tão drásticas realmente permitiu um avanço da posição feminina.

ISTOÉ – Como vê a crise do mercado financeiro americano?
Zélia Cardoso de Mel

De certa forma, é uma crise anunciada. Eu tive conversas aqui no Brasil e nos Estados Unidos sobre esse assunto. Num almoço com o Belluzzo (Luiz Gonzaga) há alguns anos, conversamos demoradamente sobre isso. O que aconteceu nos últimos anos, impulsionada pela política de juros baixos nos Estados Unidos, foi uma alavancagem enorme, tanto por parte das empresas e dos bancos como por parte das pessoas físicas, em cima de seus ativos. Eu vi, e até fiquei tentada a fazer o mesmo, pessoas alavancando em cima do apartamento para redecorar, para trocar os eletrodomésticos, para fazer viagens. Era muito fácil.

ISTOÉ – Isso explica a explosão do preço dos imóveis?
Zélia Cardoso de Mel

O aumento de preços dos imóveis foi absolutamente irreal. Só tinha uma explicação: a liquidez e a possibilidade de múltiplos financiamentos. Eu vi o preço de apartamento de um quarto em Nova York passar de US$ 180 mil para US$ 1,2 milhão. Imagine uma pessoa que comprou um apartamento por US$ 200 mil e tinha um financiamento de US$ 200 mil. Quando o imóvel passou para US$ 400 mil, ela foi ao banco e tomou novo financiamento de US$ 400 mil, liquidando o anterior. E pôs a diferença no bolso. O apartamento chegou a US$ 1 milhão, e aquela pessoa repetiu as operações de financiamento. E as empresas e os bancos alavancaram seus ativos.

ISTOÉ – Por que as agências reguladoras ficaram inertes?
Zélia Cardoso de Mel

A regulação existe, mas não funcionou. Se olharmos no microaspecto, a facilidade de dar financiamentos era enorme. Dava-se financiamento para quem não podia. A instituição financeira estava interessada em ganhar a margem dela. Quem ia cuidar depois se o financiamento era solvente não era problema dela, mas de quem estava emprestando no fim da linha. Todo mundo sabia que quando os reajustes dos financiamentos começassem haveria problemas. As pessoas não teriam como arcar com os reajustes.

ISTOÉ – ISTOÉ ? E no lado macro? O que aconteceu?
Zélia Cardoso de Mel

Zélia – A aplicação mínima nos grandes bancos de investimentos, como Goldman Sachs, é de US$ 5 milhões. E existe uma cláusula da SEC (Securities and Exchange Comission) a respeito do investidor qualificado que diz o seguinte: se o investidor tem certo ativo e certa experiência de mercado, pode participar de produtos mais sofisticados. E aí a situação é volátil. Se eu que não preencho os requisitos da SEC recomendar a alguém, dentro de solo americano, que compre ações da Vale ou da Petrobras, posso ser presa. Mas, dentro de um investment bank, você pode recomendar o que quiser.


ISTOÉ – ISTOÉ ? E para o Brasil quais serão as conseqüências?
Zélia Cardoso de Mel

Acho que o Brasil sofre, mas está preparado para sofrer. Quando houve outras crises, o Brasil enfrentava problema cambial, de balanço de pagamentos. Isso não vai acontecer, pelo menos no curto e no médio prazos. Mas haverá repercussões, em diminuição do crescimento, em menor oferta de crédito, de linhas de comércio internacional. É claro. O mundo inteiro vai crescer menos.

ISTOÉ – Até porque o Banco Central não pretende afrouxar a política de juros.
Zélia Cardoso de Mel

E o Banco Central está correto. A questão não é se o Brasil vai ser afetado. Será. Mas não vai viver as crises do passado. Estamos numa situação muito mais confortável. São muito interessantes os dados sobre a fatia da população que foi incorporada ao mercado. Mas o setor exportador será afetado. O correto é o País se adequar a este novo patamar. E o presidente Lula tem consciência disso. Ele descobriu o valor de ter a inflação sob controle.

ISTOÉ – Há luz no horizonte da crise?
Zélia Cardoso de Mel

No curto prazo, não há. O mercado vai continuar volátil. Vai ser montanha-russa mesmo, e haja coração. ISTOÉ – E que conselho a sra. dá para o investidor brasileiro? Zélia –Eu aconselho a não olhar para a carteira de ações, a deixá-la dormindo. Não comprar, não vender. Para quem tem a sorte de não estar na Bolsa, renda fixa é a melhor opção.

ISTOÉ – E a caderneta de poupança, é uma boa opção neste momento?
Zélia Cardoso de Mel

Eu não recomendaria. O rendimento da poupança é muito pequeno. Eu não tenho caderneta. O meu investimento praticamente é em renda fixa, pois os bancos brasileiros estão completamente fora de qualquer risco. Então recomendo os fundos de renda fixa dos grandes bancos. Para os meus filhos invisto nos planos VGBL, de fundos de previdência privada.


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