Caravaggio

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BACO (1597)
Essa tela da primeira fase de Caravaggio já o revela como um artista preocupado com detalhes realistas
 

Tão exímio nos pincéis quanto no espadachim, o pintor italiano Michelangelo Merisi, conhecido como Caravaggio (1571-1610), era dono de um temperamento violento e impulsivo. Sua biografia acidentada foi marcada por bebedeiras, sexualidade ambígua, amores de bordel, dívidas, duelos e assassinatos. Volta e meia ele tinha de se refugiar em lugares distantes de sua residência em Roma, como as ilhas de Malta e da Sicília, numa época em que os deslocamentos não eram fáceis e as epidemias, ao contrário, caminhavam a passos largos. Por isso viveu pouco – e também pintou pouco: ele dividia seu tempo, de igual para igual, entre as tabernas e o ateliê. Ao todo, as telas “realmente autênticas” do gênio do chiaroscuro feitas em 15 anos de atividade não devem ultrapassar 40. É de imaginar, portanto, a dificuldade de se reunir duas dezenas delas em uma mesma exposição – distribuíram-se pelos maiores museus do mundo, fazendo eco à vida nômade do autor.

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OS TRAPACEIROS (1596)
Modelos colhidos em tabernas, fundo neutro e enfoque psicológico dos personagens
 

Agora, 24 dessas pinturas com total selo de autenticidade estão reunidas na mostra “Caravaggio”, em cartaz até o dia 13 de junho na Scuderie del Quirinale, um anexo do palácio do governo, em Roma. Montada para comemorar os 400 anos de morte do gênio lombardo, a exposição vem sendo saudada com superlativos, em bom italiano. E não poderia ser de outra forma: desde a retrospectiva “Como Nascono i Capolavori” (Como nascem as obras), acontecida em 1991 no Palácio Pitti, em Florença, não se viam tantos Caravaggios juntos. E tão assombrosos. Muitas dessas telas raramente circulam pelo mundo das artes. Tome-se, por exemplo, “Cesto de Frutas”, feita no final dos anos 1500. Desde que foi adquirida há quatro séculos pelo cardeal Federico Borromeo, dono da Accademia Ambrosiana, em Milão, nunca havia saído o local. Ela é considerada a primeira natureza-morta da pintura italiana e a única que restou da produção do artista no gênero. Outra raridade: a “Anunciação”, do Museu de Belas Artes de Nancy, na França, que passou por uma restauração antes de ser exposta. Afora as conhecidas obras-primas do Metropolitan de Nova York (“Os Músicos”), da National Gallery de Londres (“Ceia em Emaús”) e da Galeria Uffizi de Florença (“Baco”, “O Sacrifício de Isaac”), os curadores conseguiram o empréstimo de trabalhos pouco conhecidos até em livros, vindos da Irlanda, da Rússia, da Áustria e da Sicília.

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JUDITE E HOLOFERNES (1600)
Cena bíblica mostrada com violência e efeito dramático
 

Mesmo para os estudiosos do artista, trata-se de um motivo para comemorações: quando foram vistas, lado a lado, três representações de São João Batista? Uma vem de Kansas, nos EUA, as outras duas, de dois museus de Roma. O tema da ceia de Emaús, quando os apóstolos reconheceram o Cristo ressuscitado, aparece duas vezes. Mais um motivo para o alarde é que essa mostra, que custou 2,3 milhões de euros aos cofres italianos, ganha todo o sentido no ambiente barroco de Roma: foi nessa cidade, afinal, que o pintor fez o seu nome e cunhou o seu estilo único, sob o aval da Contrarreforma e a proteção de religiosos de diversas hierarquias. Tudo isso somado fez da abertura da mostra, no sábado 20, uma das mais concorridas dos últimos anos. As baixas temperaturas não assustaram os frequentadores que desde a manhã engordavam uma fila que serpenteava diante do Quirinale. Nas bilheterias, a venda antecipada registrava 50 mil ingressos. A romaria dos amantes da grande arte se estende pelas ruas de Roma, já que se sai da exposição com entusiasmo suficiente para visitar as igrejas em que o artista deixou a sua marca, especialmente a San Luigi dei Francesi, na qual está a magnífica série dedicada a São Mateus.

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COROAÇÃO COM ESPINHOS (1605)
Essa raridade vinda de Viena impressiona pelo arranjo dos corpos

Pensando nessa peregrinação artística, pela primeira vez está sendo aberto ao público o Cassino Ludovisi, onde Caravaggio deixou uma pintura mural, “Jupiter, Netuno, Plutão”, se autorretratando nu na pele das três divindades. Detalhe: já se afastando dos cânones, fez o trabalho em óleo e não segundo a técnica tradicional do afresco. Ao surgir na cena artística de Roma no final do século XVI, Caravaggio se opôs ao maneirismo, que diluía as noções de equilíbrio do Renascimento. Com sua obsessão pelo detalhe realista, antídoto à artificialidade vigente, derivou-se para o naturalismo e abriu caminho para a revolução do barroco. Isso fica evidente na tela “Judite Cortanto a Cabeça de Holofernes”: o uso dramático das formas e dos efeitos de luz e sombra já prenunciavam a força de convencimento da arte barroca. Caravaggio, contudo, não parou nesse efeito de superfície. Ao preferir modelos colhidos na vida real, especialmente entre os pobres e os vagabundos das vielas e tabernas, ele mudou a relação do pintor e o seu assunto. “Os Trapaceiros” (“I Bari”), na exposição, ilustra bem esse método. O artista se apropria de uma cena comum entre os desocupados, mas a retrata diante de um fundo neutro para assim centrar no desenho psicológico dos personagens.

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CESTO DE FRUTAS (fim do século XVI)
Primeira natureza-morta italiana e a única que restou do artista
 

Diz-se que nascia aí a ideia da fotografia. Em sua “História da Arte Italiana”, o crítico Giulio Carlo Argan aponta esse momento fundamental da  pintura de Caravaggio: “De súbito a paisagem desaparece das composições caravaggianas, as sombras se tornam quase negras e se contrapõem, sem transições, a luzes violentas.” É como se ele se refugiasse numa caixa preta e posicionasse no centro as suas esplêndidas cenas bíblicas, iluminadas do alto por uma luz intensa, quase um holofote. “Pela primeira vez o artista não procura mais representar algo de exterior, mas exprimir o fluxo, o tormento, a angústia da própria interioridade”, escreve Argan. Isso explica um pouco o fascínio que Caravaggio provoca nas plateias de hoje. A luz de suas telas atravessa os séculos e a sombra do artista, em igual medida, se agiganta.

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