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SOLIDÁRIO
Scalzone, em Paris: refugiados acompanham o caso Battisti

Tal como o italiano Cesare Battisti, que está preso em Brasília e tem a extradição requerida pelo governo Silvio Berlusconi, o ativista político Orestes Scalzone procurou abrigo na França para escapar dos chamados anos de chumbo da Itália. Acusado de participar da luta armada contra o governo italiano na década de 1970, ele passou três meses na prisão antes de empreender uma fuga que incluiu uma travessia em veleiro pilotado pelo ator Gian Maria Volontè. “Eu estava pesando 40 quilos, se voltasse para a cadeia não iria aguentar”, disse Scalzone à ISTOÉ, em um café a poucos metros da Estação Central de Milão, em sua mais recente visita à Itália. Radicado em Paris desde o começo da década de 1980, o ativista político só pôde voltar ao país de origem depois de 19 anos de exílio, quando foi prescrita a pena à qual estava condenado. Por quase duas décadas, Scalzone integrou o contingente de italianos beneficiados não por uma lei ou por um asilo de direito, mas por uma promessa de campanha do socialista François Mitterrand. Em 1981, após vencer as eleições presidenciais, Mitterrand pôs em prática um asilo de fato e suspendeu as “extradições políticas” da época. Conhecida como “doutrina Mitterrand”, a iniciativa favoreceu oficialmente 300 italianos. Extraoficialmente, estima-se que foram pelo menos 600 os italianos  abrigados nessa condição pela França. Durante os 14 anos em que esteve no poder, Mitterrand manteve-se fiel à promessa de campanha.

Chegou a questionar seu ministro da Justiça, quando o doutorando em ciências políticas e professor universitário Paolo Persichetti foi preso em Paris em 1993. “Por que este homem está preso se não cometeu nenhum crime na França?”, escreveu Mitterrand, convalescente de um câncer que o mataria meses depois. Libertado pela interferência do presidente em 1994, Persichetti percebeu, então, que havia dois estilos de vida entre os italianos abrigados pela “doutrina Mitter- rand”: enquanto muitos conseguiram emprego formal e se integraram ao cotidiano do país, outros viveram anos de escuridão civil. Depois de solto, Persichetti foi levado à vida marginal. “Me deixaram livre com a condição de que eu não aparecesse”, disse ele à ISTOÉ. Passou então a integrar o grupo que tinha dificuldade em arrumar emprego e assistência médica. “Fiquei 15 anos sem ir ao dentista”, recorda. A “vida fantasma” de Persichetti – como ele próprio a define – terminou em 2002, quando se tornou o único italiano dos anos de chumbo extraditado pela França. Em Roma, foi mantido em regime fechado até 2007, com pena de 22 anos e seis meses de prisão, por ajudar a planejar o assassinato de um general em 1987. Hoje, sai durante o dia e trabalha no jornal comunista “Liberazione”. “Tenho uma vida cronometrada e metódica. Não é a liberdade que todos pensam”, conta. A extradição de Persichetti mexeu com a comunidade de italianos foragidos. Outros dois casos foram julgados: o da ex-brigadista Marina Petrella, condenada na Itália à prisão perpétua por participar do sequestro seguido de morte do então premiê Aldo Moro; e o de Battisti, também condenado à prisão perpétua, acusado de participar de quatro homicídios.

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Com diagnóstico de depressão, Marina está internada em um hospital psiquiátrico e sua extradição foi negada por motivos humanitários. Battisti fugiu em 2004 da França para o Brasil, onde foi preso três anos depois. Atualmente, o futuro de Battisti depende do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, a quem o Supremo Tribunal Federal delegou em novembro passado a decisão de extraditá-lo ou não. Em Paris, outra refugiada italiana, Paola De Luca, lembra-se dos tempos que convivia com Battisti. “Ele é uma pessoa maravilhosa, sempre me fazia rir, me mostrava seus manuscritos”, conta. Até escapar para o Brasil, Battisti gozava de fama como escritor de romances policiais e tinha prestígio entre alguns  dos mais importantes intelectuais franceses. Ao contrário do amigo famoso, Paola manteve discrição desde que chegou à França, em 1985. Muito antes de Battisti ser preso, ela já tinha passado pela experiência de ver como a “doutrina Mitterrand” poderia deixar de valer de um momento para o outro. Paola deixou  a Itália em 1980, com seus documentos em dia e a ficha limpa. Viajava, porém, ao lado do então marido, Paolo Ceriani Sebregondi, que acabara de fugir da prisão de Parma, onde cumpria pena de dez anos por participação em um grupo armado. A filha do casal, Giorgia, de apenas 2 anos, os acompanhava. “Primeiro fomos para o sul da França, de onde embarcamos para a África”, lembra Paola. No Senegal, ela ficou sabendo que seu nome estava na lista de procurados pela Justiça italiana, por cumplicidade nos crimes do ex-marido: “Disseram que formávamos um grupo terrorista, mas isso é mentira. Eu nunca fiz parte de nenhuma organização de luta armada.”

Da África, Paola viajou para Paris, onde teve um segundo filho e começou um curso de pós-graduação em física. Vivia como uma típica família de subúrbio parisiense até que, em maio de 1986, policiais franceses cumpriram uma ordem de prisão emitida pela Justiça italiana. “Anunciaram nossa captura como a descoberta do século, dizendo que tinham encontrado os dirigentes das Brigadas Vermelhas!”, indigna-se Paola. Foram 11 meses de detenção até a França decidir que não havia equivalência entre as leis francesa e italiana que justificasse a extradição. Hoje ela caminha tranquila pelas ruas de Paris, mas teme pela sorte de outros “camaradas” no exílio. Alguns, como Marina Petrella, já conseguiram o direito de permanecer na França, mesmo que presos. Outros vivem à espera de uma decisão judicial, enquanto tentam levar uma vida normal – ao todo, 76 pessoas, conforme dados da Divisão Antiterrorismo italiana. É o caso de Maurizio Di Marzio, ex-dono de um restaurante em Paris, condenado a 15 anos de prisão. Procurado por ISTOÉ,Di Marzio não quis dar declarações. “Não quero falar com a imprensa. Estou cansado das mentiras que foram publicadas sobre mim, principalmente por jornalistas italianos”, justificou. Após quase três décadas, a “doutrina Mitterrand” conta histórias de abrigo e também de feridas abertas.