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MISTÉRIOS DE EVITA
Durante o pós-guerra, Evita Perón articulou com o marido, o presidente Juan Domingo Perón, o restabelecimento das relações diplomáticas e comerciais com Moscou. Ela elogiava a Rússia: “Bela, fria, longínqua e misteriosa”

A ex-primeira-dama argentina Evita Perón participou ativamente das negociações que iriam inaugurar as relações comerciais e diplomáticas entre o seu país e a então União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS). Os encontros secretos de agentes do ditador Josef Stalin e líderes argentinos começaram logo após a Segunda Guerra (ao fim da década de 1940) e aconteciam na residência presidencial e também na quinta San Vicente, propriedade do casal Juan Domingo e Evita Perón. Isso em plena Guerra Fria. Embora Evita não tivesse nenhuma aproximação ideológica com o comunismo, tampouco com o Partido Comunista de seu país, ela foi uma incentivadora da ideia de se restabelecer laços políticos entre as duas nações, como mostram relatos revelados pelos recém-abertos arquivos russos incluídos na reedição do clássico “O Ouro de Moscou” (Record), do jornalista e pesquisador argentino Isidoro Gilbert. O então presidente Perón tentou escapar das tentativas dos EUA de alinhar o país às políticas antissoviéticas e buscou na nação russa uma ferramenta para a industrialização e o desenvolvimento da Argentina.

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Evita e Juan se aliaram aos russos e receberam fortunas dos cofres de Moscou

As divergências políticas não representavam nenhum obstáculo, desde que houvesse acordo em relação aos negócios. Uma balança comercial favorável era a meta de Evita, que, segundo o correspondente internacional russo Yuri Daschkevich, “insistia na necessidade de relações de amizade”. Assim, a Argentina exportou alimentos para Moscou e foi remunerada com o ouro soviético. A aproximação de Perón e Stalin em meados da década de 1950 incomodou a comunidade internacional, principalmente a Inglaterra e os EUA. O livro revela telegramas das missões inglesas enviados ao governo da Inglaterra expressando essa preocupação. Uma mensagem oficial escrita meses antes de Perón tornar pública a aliança diplomática com os soviéticos dizia: “O governo americano tem uma visão mais sinistra sobre a missão comercial russa porque se convenceu de que os russos estão ansiosos por estabelecer-se na Argentina, uma vez que esse país é o mais antiamericano da América Latina e, portanto, seria um centro adequado para intrigas contra os EUA.” Em 1979, o governo argentino desrespeitaria o embargo americano e comercializaria cereais com o regime soviético.

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OURO RUSSO
Evita e Juan Domingo Perón

Uma das curiosidades dos relatos e correspondências reunidas pelo  pesquisador reside no fato de ele revelar detalhes da intrincada triangulação que permitiu à URSS financiar tanto os grupos que se opunham à ditadura peronista quanto os próprios donos do poder, representado pelo Partido Justicialista de Perón. Décadas depois, durante a guerra das Malvinas (1982), e rivalizando com a Inglaterra, a Rússia auxiliou com exclusivas imagens produzidas por satélite a suprir com informações precisas os militares argentinos. E o Partido Comunista da Argentina, na descrição de Gilbert, também se cindia. Enquanto a jovem militância do Partido Comunista da Argentina conclamava o povo a boicotar a Coca-Cola, num gesto de repúdio a essa “expressão do imperialismo americano”, a alta cúpula da legenda batizara de “engarrafadora” a sua parceria com a multinacional americana Coca-Cola. Pouca gente sabe, mas por alguns anos o Partido Comunista deteve o controle das empresas que engarrafavam o refrigerante no país. 

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Leia a seguir trecho do primeiro capítulo de "O ouro de Moscou"


Menem: o último mandatário argentino que foi à URSS

Demorou muito para Carlos Saúl Menem ser convidado por Mikhail Gorbachov a visitar a URSS. O líder soviético sentiu o pedido como uma perseguição. Protocolarmente não se justificava outra visita de um presidente argentino. Em 1986, recebera Raúl Alfonsín. Mas Menem não queria ser menos que seu antecessor, queria equiparar-se aos grandes. No entanto ressentia com rancor o prestígio internacional que Alfonsín acumulara.
Em 1986, solicitou um maior relacionamento com os soviéticos. Seu colaborador, o jornalista Martínez Biademonde, mais tarde seu primeiro subsecretário-geral da Presidência, foi quem então ajustou uma reunião com o embaixador, Oleg Kvasov. Pouco depois, Menem pediu para ser convidado a uma festa em honra de um dos homens fortes do Kremlin que se realizaria na sede diplomática. Tendo recebido o convite com o brasão da URSS, Menem decidiu não participar para não ficar diluído na concorrência, que transbordava dos três salões preparados da embaixada. O homenageado desse meio-dia era Eduard Shevardnadze, que visitava Buenos Aires como um dos pontos de uma viagem à América Latina. Mas, à tarde, Menem foi o único político importante a percorrer a exposição que a URSS inaugurava no Salão Municipal.
Alberto Kohan, várias vezes funcionário de Menem e um de seus conselheiros-chave, e Martínez, estiveram na URSS, em fins de 1989, para fazer sondagem sobre negócios de armamentos. Os dois fizeram em Moscou gestões sobre a possível compra de caças Mig 29 e Sukhoi (dois modelos de importância e mais baratos do que seus similares no Ocidente). Também pediram informações sobre helicópteros, os AKs que, dois anos depois, foram adquiridos por Antonio Erman González, sobre miras noturnas e sobre submarinos diesel. Buscavam um acordo triangular para vender a um terceiro país os submarinos de origem alemã que estavam sendo fabricados para a Argentina. A Marinha se recusou a participar de qualquer operação, mas não o Exército e a Força Aérea. Os pilotos testaram, no Peru, os Migs e os Sukhoi e ficaram satisfeitos.
Essa viagem de Kohan não foi compreendida pelos soviéticos. Era uma tentativa de fazer negócios pessoais? – perguntavam-se o Ministério de Assuntos Estrangeiros (MAE) e o embaixador Oleg Kvasov. O secretário-geral da Presidência, Kohan, disse ao embaixador Kvasov que tinha o propósito de preparar a viagem que Menem faria alguns meses depois. Mas, em Moscou, o alto funcionário não teve entrevistas no nível necessário para essa incumbência. No início, disse aos russos que seria portador de uma carta para Mikhail Gorbachov e que desejava se entrevistar com o chanceler Shevardnadze. Mas, até o último momento, a carta não apareceu. Depois, argumentou que queria apenas conhecer o ambiente. Na opinião da embaixada, nenhuma das atividades de Kohan foi para preparar uma visita. A impressão foi a de que Kohan e Martínez, com essas conversações "fechadas", desejavam enviar mensagem aos EUA. Naquele momento, a Argentina estava em negociações avançadas com a empresa Pescarmona para a venda de aviões comerciais.
Para compensar a operação, os negociadores de Menem propuseram vender torneiras e outros insumos de tecnologia argentina conforme o nível de conforto médio dos soviéticos.