Quando a diretora carioca Lúcia Murat começou a escrever o roteiro do filme Quase dois irmãos, em 1998, se inspirou na história de filhas de amigas que trocaram o conforto de casas de classe média na zona sul do Rio de Janeiro pela adrenalina de romances com traficantes na favela. O filme conta o encontro de presos políticos que se misturaram a criminosos comuns no presídio da Ilha Grande e originaram a Falange Vermelha. Mas a motivação foi mesmo o chamado amor bandido. Só que Lúcia não imaginava que casos como o da personagem Juliana, vivida pela bela atriz Maria Flor Calaça, 21 anos, estivessem tão em evidência cinco anos depois, na época do lançamento do longa. “Recebo em média três casos desse tipo por semana”, contabiliza Sheila dos Santos Fonseca, do Conselho Tutelar de Laranjeiras, onde chegam casos de violência com adolescentes ocorridos na zona sul carioca.

O drama da jovem T.S., 17 anos, cujo pai, um taxista, acionou a polícia na semana passada para resgatá-la do Morro do Turano, na Tijuca, foi um sinal de alerta. A adolescente se envolveu com traficantes e se expôs a vários riscos. Mesmo depois do escândalo, anunciou a decisão de voltar à favela quando completar 18 anos. “Lá todo mundo se ajuda, é bem melhor”, justificou-se. Há outras adolescentes com o mesmo perfil morando no Turano. Segundo a conselheira Sheila, o problema cresce a cada dia. “Elas se envolvem pelo glamour e poder dos traficantes. Ficam cegas”, diz ela, que já acompanhou casos de adolescentes que acabaram mortas. Um deles aconteceu em 1995. Flávia Silveira Araújo Prestes, neta do ex-conselheiro do Tribunal de Contas do Distrito Federal Raul Soares Silveira, foi assassinada pelo então gerente do tráfico do morro do Vidigal, no Leblon, José Martins. A jovem morava no mais nobre endereço do Rio, a avenida Vieira Souto, em Ipanema, e foi casada com um ídolo do Fluminense, Carlos Alberto de Araújo Prestes, o Tato.

Para interpretar Juliana em Quase dois irmãos, a atriz Maria Flor conversou com filhas de amigas da diretora Lúcia Murat que inspiraram seu personagem. “O morro exerce um atrativo porque é diferente. No Rio estamos próximos das favelas”, lembra a atriz. O filme causou impacto no Rio, mas na Europa o efeito foi ainda mais forte. “Essas histórias causaram espanto na Alemanha e na França”, conta Lúcia.

Bem-criadas – O que levaria uma adolescente a deixar a segurança de casa para se expor a riscos tão grandes? Lulli Milman, psicóloga e psicanalista do Instituto de Psicologia da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), diz que elas são impulsionadas pela transgressão. “Largam o desconforto interno da família por uma vida materialmente precária. É como se dissessem: agora, eu posso”, explica. A psiquiatra Maria Teresa de Aquino, coordenadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Atenção ao uso de Drogas (Nepad), da Uerj, vê essas adolescentes como vítimas de famílias esgarçadas, que não impuseram os necessários limites. “Não se pode aprisionar nem dar liberdade total”, distingue. Para a conselheira Sheila, o que está por trás desses dramas é uma geração carente, que não tem a atenção dos pais. “São órfãs de pais vivos”, define. Mas nem sempre é assim. As adolescentes com as quais a atriz Maria Flor conversou eram o que ela chama de “bem-criadas”. Flor relata que os pais proibiam as filhas de ir aos bailes funk e elas fugiam pela janela. “Não era falta de carinho. Elas queriam aventura.” O que as adolescentes não sabiam, e parece que continuam não sabendo, é que a aventura pode virar tragédia.