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PREJUÍZO
João Paulo tentou sair do trabalho na chuva. Resultado: perda total do carro

A companhar a previsão do tempo é uma rotina entre americanos e europeus, acostumados a intempéries violentas, como nevascas e furacões. Tal hábito nunca fez parte da cultura brasileira até o dia 23 de dezembro, quando olhar para o céu e monitorar os sites meteorológicos se tornaram uma necessidade para moradores das regiões Sul e Sudeste do País, principalmente os paulistas. Durante 47 dias, a cidade de São Paulo foi castigada por chuvas de proporções bíblicas, que alteraram a rotina dos moradores de todas as classes sociais da megalópole. Arrebatados pelo despreparo do poder público em lidar com os revertérios climáticos, os paulistanos tiveram que usar a criatividade para amenizar os efeitos do caos e incluir a rotina dos temporais na agenda. Todos os dias, por volta das 17 horas, o humor do tempo muda vertiginosamente. O sol é coberto por nuvens negras e o céu é dominado por raios e trovões. As árvores, derrubadas por ventos de em média 53 km/h, bloqueiam ruas e avenidas. Postes com fiação danificada comprometem o fornecimento de energia elétrica de quarteirões inteiros. Por vezes, de todo o bairro. Sem luz, moradores de prédios enfrentam diariamente as escadas para chegar a seus apartamentos. Após o banho frio, preparam um jantar à luz de velas e experimentam noites sem tevê. A gigante urbana se rendeu aos hábitos simples de uma realidade quase rural. “Nos acostumamos com as chuvas de fim de tarde”, afirma o empresário Paulo Tadeu Vieira, 45 anos, dono da editora Matrix, um exemplo de quem reformulou a agenda para lidar com o dilúvio, que estourou parte das telhas e entupiu as calhas do galpão de sua empresa.

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MUDANÇA
O editor Paulo Tadeu não marca mais reuniões no fim da tarde.

O dano provocou a perda de exemplares de livros e um prejuízo razoável. Por precaução, Vieira deixou de marcar reuniões no fim da tarde para visitar o local com mais freqüência. “Tenho medo de que as chuvas causem mais problemas”, diz. Além das enchentes, o grande vilão de quem pretende cumprir os compromissos diários é o trânsito que, se já é caótico normalmente, tem estado travado por causa dos temporais. A Companhia de Engenharia e Tráfego não tem dados precisos. Mas quem está na rua já notou: “Nos dias de chuva, o congestionamento começa duas horas mais cedo”, diz Milton Matsubara, presidente da Associação de Taxistas em São Paulo. Para driblar a confusão na via expressa que conecta a zona leste ao centro de São Paulo, o administrador de empresas Rodrigo Figueiredo, 27 anos, optou por um desvio alternativo cinco quilômetros mais longo do que o trajeto tradicional. “Economizo 40 minutos e consigo chegar ao trabalho a tempo”, diz o rapaz, que identifica um lado positivo no aguaceiro. “Para fugir do congestionamento à noite vou todos os dias à academia.” Além das iniciativas individuais, as empresas tiveram que elaborar planos de contingência para se adaptar ao dilúvio. Os funcionários da agência de publicidade Neogama-BBH improvisaram um sistema de alerta humano para os dias de aguaceiro. O zelador, que mora nas dependências da empresa, ficou encarregado de fazer as vezes de meteorologista e emitir boletins diários sobre o céu da região. Confirmados os prenúncios de mau tempo, a equipe, impossibilitada de entrar, está liberada para trabalhar na residência. “Todos os dias, levamos para casa os nossos HDs externos”, afirma Mônica Charoux, diretora de comunicação da agência, referindo-se ao cérebro do computador. Para enfrentar o oceano que se forma do lado de fora, a Neogama pretende criar uma saída de emergência com botes salva-  vidas. “É a única forma de conseguirmos nos deslocar”, diz Mônica. A agência está situada na Vila Leopoldina, bairro conhecido pela concentração de agências de publicidade, produtoras de vídeo e estúdios fotográficos. A situação é tão grave que os empresários da região  criaram uma associação para estruturar uma operação de emergência para os dias de chuva. O entorno está entre os mais sacrificados pelos temporais por ser uma área de várzea.

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A artista plástica Maria José protege seu ateliê com sacos de areia

Alguns funcionários tiveram danos permanentes. “O meu carro teve perda total”, lamenta o produtor gráfico João Paulo Leitão, 36 anos, que obteve cobertura do seguro. Se as atividades obrigatórias, como as profissionais, foram modificadas, imagine as de lazer. Os museus, por exemplo, têm estado vazios à tarde – 70% das visitas acontecem até as 14h. Na semana passada, a chuva diminuiu de intensidade, mas a população continua ressabiada. “Não tenho coragem de tirar os sacos de areia da porta de casa”, diz a artista plástica Maria José Knoblauch, 63 anos, moradora do Brooklin, bairro nobre da capital paulistana. No dia 21 de janeiro, Maria José foi surpreendida com a inundação de sua casa e arregaçou as mangas para amenizar os estragos. “Tive que jogar fora os tapetes, o sofá e fazer uma faxina de 18 horas”, diz a artista, que comemora um milagre. A galeria e todo o seu trabalho escaparam do aguaceiro. Ela precisou de quatro sacos plásticos de 100 litros para se livrar da folhagem que caiu pelo jardim, comprou dez sacos de 20 quilos de areia para barrar a entrada da água pela porta e 150 telhas para cobrir o telhado destroçado pelas águas e pelo vento. “A chuva era uma tragédia anunciada”, afirma Delmar Mattes, geólogo da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São  Paulo, que participa de um grupo da Câmara Municipal para estudar o caos. “Serve como lição para que se investa em planos de contingência nas próximas tempestades”, diz. Mais rápida do que os governantes, a população paulistana já aprendeu a conviver com mais esse infortúnio urbano.

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