A última prisão

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– Uai… Ele existe mesmo? Pensei que era uma lenda.
– Existe… Eu pensava que ele tinha existido há muito tempo e não existia mais, que já estava morto.
O assunto entre homens que tomavam café numa padaria do bairro de Pinheiros, em São Paulo, era uma pequena notícia de jornal, lida numa manhã fria de junho de 1970, época em que se noticiavam prisões e mortes de “terroristas”. Naquele dia, porém, o preso em questão não era um “terrorista”, embora tenha aterrorizado a burguesia e a polícia da cidade por muito tempo. Era um simpático velhinho de 92 anos que, segundo os jornais, fora flagrado tentando arrombar a casa de número 909 da rua Fradique Coutinho, na Vila Madalena.
O Gato dos Telhados, o Homem de Borracha, o Bom Ladrão, o Ladrão Nobre, o Homem-gato, famoso pelas fugas espetaculares, que deixavam a polícia perdida, usava grandes molas nos pés, dizia um aposentado. Um rapaz insistia que não acreditava em tal história. Era uma lenda. Onde já se viu homem que pula de prédio em prédio até escapar do cerco de centenas (ou milhares, segundo as lendas) de policiais que cercavam todo o quarteirão?
– Ele pulava de um prédio pro outro sem quebrar nenhuma telha! – insistia o velho.
– E, para atravessar a rua, pulava de cima de um prédio até o meio do asfalto e a mola dava impulso para ele chegar em cima de uma casa do outro lado.
– Roubava dos ricos e dava aos pobres — comentou outro.
– Era um bom ladrão.
As opiniões continuavam:
– Era anarquista, odiava qualquer governo.
– Era culto. Lia Dante Alighieri, tudo quanto é clássico da literatura, ouvia ópera…
– Lia até Bertrand Russell…
– Era um Robin Hood de São Paulo: parte do que roubava ele dava aos pobres.
– Era não. É!- lembrou o jovem que o considerava um mito.
– Tá aqui a notícia da prisão dele. Tá vivo. E roubando!

Meneghetti era isso: uma lenda, até então viva. Seu nome virou sinônimo de ladrão em boa parte do Brasil. Na minha infância no sul de Minas, por exemplo, eu me lembro que, para xingar alguém de ladrão, chamava-se a pessoa de Meneghetti ou de Sete Dedos. Eram os ladrões mais famosos da história de São Paulo. Os dois chegaram a conviver na prisão, numa das passagens de Meneghetti. Sete Dedos era um mulato bem falante, que tinha mesmo apenas sete dedos. Era famoso também. Mas aqui na Pauliceia, embora Meneghetti e Sete Dedos fossem sinônimos de ladrão, os dois xingamentos tinham sentidos diferentes. Chamar alguém de Sete Dedos equivalia a xingá-lo de ladrão. Mas de Meneghetti era diferente. Era ladrão, mas nãoum ladrão ruim. Era esperto, humano, adepto da não violência, anarquista, contestador da sociedade capitalista, da burguesia e da aristocracia… Enfim, um herói popular. Um sujeito que fazia com a burguesia o que muita gente tinha vontade de fazer: roubá-la e gozá-la. O mesmo em relação à polícia, que ele provocava pelos jornais. Era uma polícia violenta e extremamente preconceituosa contra imigrantes pobres, como a maioria dos italianos. Meneghetti, enfim, “era isso”, “era aquilo”… Parecia uma figura da literatura, resultado da imaginação de um escritor policial e incorporado ao imaginário popular. Mas não, naquele dia, as novas gerações de então ficaram sabendo que ele existia mesmo, era já um velhinho com uma idade que a maioria dos que a atingiam estava numa cadeira de balanço, mas ele estava ali, tentando relembrar – na prática – os velhos tempos. E os idosos puderam falar de suas façanhas com certo orgulho de ter vivido sua época, alguns diziam ter mesmo ido ao centro ver o famoso cerco ao grande ladrão num dia igualmente frio do distante ano de 1926.

A descrição que dele faziam os mais cultos permitia pensar que era mesmo um personagem de livros como Arsène Lupin, o “ladrão de casaca” criado pelo escritor Maurice Leblanc em 1907 para se contrapor ao já lendário e fictício detetive Sherlock Holmes, do inglês Conan Doyle. Os franceses sempre tiveram uma rixa com os ingleses, inclusive na literatura, e criariam não um detetive, mas alguém que pudesse enganar o dos adversários. E Arsène Lupin era isso. A tradução “ladrão de casaca” não corresponde bem ao título original, Arsène Lupin, gentleman-cabrioleur, literalmente “ladrão-cavalheiro”. Um ladrão que não usava a violência, que roubava e humilhava a burguesia e enganava a polícia… Mas só na literatura, embora haja franceses que até hoje acreditem tratar-se de um personagem baseado em alguém que existiu de verdade.

Já Meneghetti, apesar de não ter inspirado nenhum Maurice Leblanc ou Conan Doyle, era, repito, um herói popular de verdade que assustava e encantava os paulistanos pouco depois do início do século XX. Quando chegou na cidade, aos 35 anos, já era um ladrão internacional, mas, na memória popular, foi “o ladrão de São Paulo”. Aqui ele cometeu suas maiores façanhas e ficou conhecido pelas fugas ousadas, pelos desafios à polícia, pelas provocações que fazia usando a imprensa e pelos muitos anos que passou por diversas prisões – uma delas terrível, uma verdadeira jaula. Aqui seu nome virou mito. Por falar em nome, usou vários: Mario Mazzi, Antônio Garcia, Angelo Bianchi, Amleto Gino, Amleto detto Gino, Menotti Menichetti, Italo Bianchi e talvez outros. Não se sabe. É impressionante não ter sido descoberto pelo cinema. Vale o velho chavão: “Se fosse nos Estados Unidos ou na Europa…”

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Só o cerco que terminou com sua prisão em 1926 renderia bons filmes. Suas aventuras, seu estilo, suas ações somadas às suas ideias, enfim, sua vida e o mito que se tornou podiam ser tema de muitos filmes. Mas, repetindo outro velho chavão, estamos no Brasil. Apenas um curta-metragem foi feito sobre ele, justamente sobre um cerco policial: Dov’e Meneghetti, que ganhou vários prêmios, nos festivais de Gramado, Curitiba e no Rio Cine, entre outros.

Voltando à sua última prisão, em 1970 já não era o mesmo, estava velho demais para roubar. Os jornais diziam que, na noite de 13 de junho daquele ano, o velho ladrão Gino Amleto Meneghetti fora flagrado tentando forçar o portão de uma casa. Preso em flagrante, acabou sendo levado para a delegacia com as armas do crime: um martelo e uma talhadeira. Deu azar, porque um policial percebeu e o prendeu. Mas ele negava e contava outra história. Dizia que apenas trazia nas mãos as ditas ferramentas, embrulhadas num plástico e, quando passava em frente à tal casa, foi reconhecido por um policial que queria fazer nome às suas custas. Tanto que teria começado a gritar, chamando a atenção por ter pego o famoso ladrão. Ao delegado, Meneghetti repetiu essa história, dizendo que o próprio dono da casa saiu para a rua com a gritaria do policial e comprovou que não havia sinais de tentativa de arrombamento no portão, mas não quis ir como testemunha até a delegacia.

Verdade ou mentira? Isso fica por conta da imaginação de cada um, pois o próprio Meneghetti, em certas ocasiões, diziaser tolice reconhecer um roubo, embora em outras anunciasse que era mesmo ladrão. Quando roubava joias e dinheiro dos palacetes da alta burguesia paulistana costumava deixar um cartão de visitas que o identificava como expropriador daqueles objetos que não fariam falta aos ex-donos. Em alguns casos, chegou a deixar um bilhete aconselhando as senhoras burguesas a comprarem joias em estabelecimentos mais idôneos, porque o joalheiro de quem teriam comprado vendera gato por lebre. Eram joias falsas. Abusado! Seja como for, essa prisão durou pouco, o tempo de depor ao delegado, que considerou apenas uma contravenção andar com ferramentas suspeitas. “Não tem crime, não tem vítima, não tem muamba”, contaria Meneghetti, lembrando o episódio.

Oficialmente, essa foi a última tentativa de roubo praticada por ele, o mais famoso ladrão romântico da Pauliceia, cuja fama se estendeu para muito além da cidade, chegando até mesmo ao exterior. Tanto que o escritor Albert Camus, de passagem por São Paulo no início da década de 1950, fez questão de incluir no seu roteiro uma visita a Gino Meneghetti, que amargava mais uma prisão. Conversaram muito. Na despedida, Camus perguntou se podia fazer alguma coisa por ele. “Pode”, disse Meneghetti, “me dê um cigarro”. Nessa época ele já não era tão maltratado na prisão como em períodos anteriores quando o tratavam como um animal e ele gritava pelas grades, em italiano, “Io sono un uomo!” [eu sou um homem].


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