Braço direito de seu antecessor, o carismático João Paulo II, o alemão Joseph Ratzinger, o papa Bento XVI, está aos poucos se desvencilhando do estigma de ultraconservador que sempre o marcou. Do catolicismo de salto alto e muito luxo ele quer distância. Embora sofisticado no jeito de se vestir, tem surpreendido muitos católicos, antes desanimados, com a simplicidade que marca seus esforços e decisões para tornar a Igreja menos "papacêntrica". Não quer que a Igreja se converta exclusivamente no homem que a guia. Procura ser o menos invasivo possível. Se era outra a sua imagem anterior, foi porque, disciplinado, ele se acomodou muito às conveniências de João Paulo II, dizem os analistas italianos do Vaticano. Quem poderia imaginar que, ao contrário dos anteriores, Bento XVI, por iniciativa própria, se encontraria por quatro horas com um teólogo suíço de esquerda, Hans Küng, que teve seus direitos de lecionar pela Congregação da Fé do Vaticano cassados em 1979? Küng arrebatou o ódio do Vaticano ao questionar por várias vezes o dogma da infalibilidade do papa. Ele também ouviu por longo tempo outro teólogo, o brasileiro Leonardo Boff, também de esquerda, principal mentor da Teologia da Libertação, algo inimaginável em papados anteriores.

As mudanças iniciadas por Bento XVI tiveram um marco: a encíclica Deus é amor, lançada no começo do ano. No documento, ele nomeia 15 novos cardeais e começa a mexer na poderosa cúpula romana. Explicação para os seis meses de espera entre sua escolha e a publicação da encíclica: Bento XVI é habitualmente lento e reflexivo. Esperou para ter conhecimento antes de tomar decisões que devem arejar e revolucionar a Igreja. “O papa deixa, aos poucos, desvanecer o excesso e a superexposição na mídia de João Paulo II”, disse um estudioso do tema à radio BBC Brasil.

Ele surpreendeu também ao dar ouvidos a questões delicadas sobre controle de natalidade, união entre homossexuais, apresentadas a ele numa entrevista de
uma revista católica. “Na verdade, o cristianismo, o catolicismo não é um conjunto de proibições, mas uma opção positiva”, ele diz. “Nós temos uma idéia positiva
a propor: o homem e a mulher foram feitos um para o outro, formam uma família,
que é a garantia de continuidade. Isso não é uma invenção católica. Todas as culturas, no fundo, sabem disso. No que se refere ao aborto, ele recorre ao sexto mandamento – não matar – para reforçar sua condenação. A ala mais liberal da Igreja não gostou dessa posição. E a revista Time, nessa ocasião, o chamou de “O vigário da ortodoxia”.

Outro bom indício de mudança: Bento XVI quer simplificar as coisas. Ele não gosta do barroquismo e da hipertrofia burocrática da Cúria. É um homem simples que sempre preferiu andar a pé, não gosta muito de viajar, adora tocar piano, é tímido demais. Sua viagem ao Brasil no ano que vem é uma quebra dessa rotina. Depois de um ano e meio no alto comando da Igreja Católica, está se saindo melhor do que a encomenda. Ele teve a desgraça, segundo descreveu dom Paulo Evaristo Arns, de ser considerado ultraconservador. “E poderá ser bem diferente porque agora ele é livre, pode decidir como quer, mostrou-se inteligente, dono de uma sensibilidade fina para todas as dificuldades das pessoas.” E teve a graça de ser um pianista apaixonado pelo rebelde e irreverente Mozart quando a Igreja Católica está mais para o linha-dura Wagner, também reverenciado na música clássica.

O fato de colocar chapéus, desfilar pela Praça São Pedro como Papai Noel e usar tênis é explicado como uma tentativa de identificação com o público que ele encontra. E, ao mesmo tempo, um esforço para se aproximar e conquistar novos fiéis, já que a insatisfação com o catolicismo tem provocado a diminuição do rebanho. Talvez com ele e suas exibições de simplicidade mudem de idéia. Bento XVI morava a alguns passos do Vaticano. Depois de ser anunciado papa, ele voltou lá a pé para arrumar suas coisas, tocar piano e providenciar sua mudança, sem a ajuda de ninguém.

Mesmo os críticos admitem que, aos poucos, ele vem deixando de lado a pompa do Vaticano e tocando em pontos delicados para seus antecessores. Tem uma preocupação social evidente. Uma característica que pesa a seu favor é o distanciamento dos conchavos políticos freqüentes no Vaticano. Tem sido mais pastor do que inquisidor, fazendo lembrar remotamente o papa João XXIII, amado pelos cristãos e a caminho de se tornar santo.

Apesar de sua timidez, Bento XVI tem conseguido audiência expressiva em suas manifestações, um passo importante para obter apoio às mudanças. Um jornal alemão o definiu bem: ele é um acadêmico que as pessoas entendem. Fala com densidade e seriedade, sempre se esforçando para se fazer entender. Sabe que alcançar a sua prioridade – levar os católicos de volta à Igreja – é muito difícil. E que o apoio dos jovens poderia encurtar o caminho.

“A disponibilidade para o bem é muito forte na juventude, basta pensar nas muitas formas de voluntariado que existem. Prossigam neste caminho”, ele diz. Mais uma vez sobe no muro quando se fala da existência de mulheres ativas na Igreja que ainda continuam de alguma forma invisíveis porque a constituição do Colégio dos Apóstolos parece proibir a ordenação de mulheres. “Não se pode pensar que, na Igreja, a única possibilidade de desempenhar um papel de relevo seja a de ser sacerdote”, se esquiva.

Numa de suas raras entrevistas, foi indagado sobre outro ponto polêmico no comportamento da Igreja Católica em relação a problemas cruciais como, por exemplo, a fome, a miséria, as epidemias. “Em toda a África e também em muitos países da Ásia temos uma grande rede de escolas de todos os níveis onde, antes de tudo, se pode aprender, adquirir verdadeiro conhecimento profissional e, com isso, obter autonomia e liberdade.” Seus críticos não o perdoaram por tamanha cegueira em relação a um povo faminto até a alma. Foi um grande deslize, para muitos imperdoável a um pastor bem-intencionado. “Foi uma demonstração de que ele ainda não se livrou completamente do elitismo de seus antecessores”, comentou um jornal italiano.

Ao conhecer Bento XVI aos poucos, os cristãos rezam para que as mudanças insinuadas alcancem a realidade – inclusive em relação ao miserável continente africano. É urgente. O cristianismo na Europa parece estar se reduzindo a uma religião minoritária. Na América do Sul, especialmente no Brasil, proliferam religiões com milhões de seguidores. As sociedades modernas, nas decisões importantes sobre política e ciência, levam cada vez menos em conta os valores cristãos da Igreja. De um desafio miúdo ele já se desvencilhou.

O sisudo papa admitiu que “saber ver o aspecto divertido da vida e sua dimensão alegre, e não levar tudo tragicamente, é muito importante”. E completou: “Um escritor já disse que os anjos podem voar porque não levam as coisas tão a sério. Talvez também nós pudéssemos voar um pouco mais.” A dúvida fica por conta das mudanças: até quando a Igreja Católica será vítima da duradoura miopia do Vaticano, onde ainda prevalece a disciplina da Igreja e as costas viradas para o clero progressista? Só o papa Bento XVI poderá responder.