Filmes de ficção científica, por definição, deveriam sempre se basear em coisas irreais que podem um dia se tornar verdadeiras através do avanço da ciência. De uns tempos para cá, esse gênero cinematográfico passou a combinar a ciência com a ação de guerreiros insanos, massacres étnicos e descaso com o meio ambiente. Talvez pelo fato de que tudo isso já esteja acontecendo no mundo real, a nova safra de filmes de ficção começa agora a se mostrar extremamente realista. Esse é o caso, por exemplo, de Filhos da esperança (Children of men), filme que o diretor mexicano Alfonso Cuarón acaba de apresentar no Festival de Veneza e que tem estréia prevista em novembro – ele também dirigiu E sua mãe também (2001) e Harry Potter e o prisioneiro de Azkaban (2004). Outros exemplos dessa nova ficção são Sunshine, de Danny Boyle, e O homem duplo (Scanner darkly), de Richard Linklater, com estréia programada para os próximos meses.

Na visão de Cuarón, em 2027 os países estarão esfacelados, fundindo-se uns com os outros. A exceção será a Inglaterra, para onde fluirão imigrantes de todas as partes do planeta. Por alguma razão, as mulheres se tornarão inférteis e se passarão quase duas décadas sem que nasça alguma criança. Eis um resumo de Filhos da esperança. Mais ainda: entediado, o personagem Theo (interpretado por Clive Owen), que deixa de ser um ativista e vira burocrata, vai se aconselhar com Jasper (Michael Caine), velho cartunista que se livrou do alcoolismo e vive solitário na selva plantando a sua própria maconha. Quando volta a Londres, Theo é encarregado pela terrorista Julian (Julianne Moore) de arrumar uma documentação falsa para uma imigrante. Kee (Claire-Hope Ashitey), a tal imigrante, é uma africana grávida de oito meses. O cineasta Cuarón se inspirou em um livro da inglesa P. D James, especializada em histórias policiais.

Já o inglês Danny Boyle, de Transpotting (1996) e A praia (2000), cujo filme Sunshine tem estréia prevista para abril do ano que vem, preferiu enfrentar uma ameaça externa – no caso, a ameaça definitiva à humanidade, ou seja, a extinção do Sol. Ambientado por volta de 2050, a história gira em torno da viagem de uma nave. Os percalços por que passa a tripulação de oito homens e mulheres (Rose Byrne, Cliff Curtis e Chris Evans, entre outros) os leva a perder qualquer referência de realidade. Para os astronautas que rumam em direção ao Sol o grande problema é saber até onde uma expedição parecida, realizada sete anos antes, cometeu erros e acertos e qual a linha de separação entre ambos – ou seja, o que está em jogo é a mistura da sanidade com a insanidade mental. O diretor Richard Linklater, celebrizado pela animação Waking life (1991), vale-se mais uma vez em O homem duplo da técnica de computação gráfica (rotoscoping) que colore e destaca o ator do cenário. Linklater baseou-se na novela A scanner darkly, do americano Philip K. Dick, autor das histórias que inspiraram Blade runner – o caçador de andróides (1982), O vingador do futuro (1990) e Minority report – a nova lei (2002). Dick sempre lançou mão de sua experiência com drogas para escrever. Drogado e alucinado, projetava no papel as suas visões do futuro.

Em O homem duplo, Bob Arctor (Keanu Reeves) é um policial que age disfarçado de traficante e dependente químico. Na Los Angeles de um futuro não tão distante, a droga da moda é o D – primeira letra da palavra death, que significa morte. Para cumprir sua missão, Arctor divide o seu apartamento com dois tipos desprezíveis, Luckman (Woody Harrelson) e Barris (Robert Downey Jr.), e divide a cama com a megatraficante Donna Hawthorne (Winona Ryder). Aqui o problema é que o agente, que consegue enganar a todos valendo-se de um terno que o transforma em um holograma ambulante, passa a enganar a si próprio, confundindo a realidade (o policial) com a ficção (o viciado que vive à margem da sociedade). Como se vê, em todos os filmes descritos acima, a expressão ficção é apenas um rótulo de classificação. Tudo é realidade.