Na quarta maior metrópole do mundo há estilhaços para todos os lados. É a vidraça da ex-prefeita Marta Suplicy, espatifada por uma saraivada de números preocupantes disparados pela bateria aérea tucana, que empurram a petista para o paredão da Lei de Responsabilidade Fiscal. Como se não bastasse, seu desgaste contenta desafetos dentro do próprio partido, acirrando a disputa pela indicação petista de quem vai disputar a cadeira de Geraldo Alckmin no Palácio dos Bandeirantes. Depois de três meses à frente da Prefeitura de São Paulo, os tucanos gritam, em uníssono, que os cofres paulistanos estão da cor do PT: no vermelho. Quando Marta assumiu a prefeitura, em janeiro de 2000, tudo era festa para o partido. Ex-deputada federal, ela era uma estrela em ascensão fulminante e sua gestão já era cantada em verso e prosa como a grande vitrine do chamado “modo petista de governar”. Marta herdou uma prefeitura com os cofres magros, depois de oito anos de administração de Paulo Maluf seguido de Celso Pitta, e não se cansou de reclamar da “herança maldita”. A construção das sofisticadas escolas batizadas como CEUs na empobrecida periferia de São Paulo e a instituição do bilhete único nos transportes coletivos foram duas de suas principais marcas. A reeleição de Marta, diziam os caciques petistas, estava no papo. Mas a administração deixou de lado a saúde e às vésperas da eleição concluiu obras às pressas, conturbando o trânsito da já tumultuada metrópole, com seus 17,8 milhões de habitantes. Afinal, São Paulo, no quesito aglomerado urbano, só perde para Tóquio, Cidade do México e Bombaim (Índia). Naquele momento, a vitrine petista já apresentava rachaduras.

Desconfiado, o paulistano optou pelo ex-ministro da Saúde José Serra. No início, o tucano não jogou pedras: “Vou governar sem espelho retrovisor, olhando para a frente”, disse, na cerimônia de transmissão do cargo, em 1º de janeiro, diante da antecessora Marta. Era um recado de que iria evitar deflagrar uma guerra com o PT, o que poderia dificultar-lhe a vida na relação com o governo Lula. No máximo, o prefeito lançava alguns leves desabafos, sempre tomando o cuidado de não citar o nome de Marta, como fez no final de janeiro: “Tem muita, mas muita coisa para pagar, como nunca aconteceu na história de São Paulo.” Mas a trégua parece estar acabando. Constatando que a saúde financeira da megalópole está mais do que frágil, Serra e seus colaboradores tucanos passaram a abrir o bico e a gritaria está cada vez mais estridente: em coro todos acusam a gestão Marta de ter priorizado a gastança. “Foi uma gestão irresponsável. De certa forma, eles imaginaram que, pelo fato de nos últimos dois anos (da administração Marta) ter o governo federal a seu lado, poderiam fazer tudo sem nenhuma penalização”, afirmou o líder do PSDB na Câmara dos Deputados, Alberto Goldman (SP).

Sem pagamentos – O secretário Municipal de Finanças, Mauro Ricardo Costa, reforça o rótulo: “É uma irresponsabilidade deixar R$ 8 bilhões de dívidas para seu sucessor pagar.” Nas contas do responsável pelas finanças paulistanas, os compromissos assumidos pela gestão petista, vencidos e não pagos, com fornecedores somam R$ 2,1 bilhões. Costa chega ao valor de R$ 8 bilhões porque adiciona mais R$ 5,8 bilhões referentes a outros compromissos não quitados pela administração anterior, como dívidas com a Eletropaulo e a Sabesp, além de precatórios. Segundo ele, o calote deixou fornecedores, pessoas físicas e jurídicas, sem receber há cinco meses. “Se deixaram dinheiro, como dizem, por que não pagaram?”, questiona o secretário. Ele acusa a gestão petista de deturpar a Lei 4320, que regulamenta o sistema de contabilidade pública, ao “brincar” com os números. “Eles justificam que determinados valores não são compromissos de 2004, e sim de 2005. Mas empenho não é feito na data de vencimento. É previsão. O que vence em 2005 é compromisso de 2004, sim! Eles estão no balanço”, reage Costa. O secretário diz que a gestão de Marta maquiou as contas ao cancelar os empenhos: “Uma vez suspensos, os compromissos deixam de ficar no balanço.”

Para Mauro Costa, Marta infringiu a Lei de Responsabilidade Fiscal com relação ao balanço das contas da prefeitura. “Do meu ponto de vista, sim, mas cabe ao Tribunal de Contas do Município e à Justiça fazer esse julgamento.” Outra acusação contra Marta é de que ela teria descumprido a LRF ao fazer operação de crédito para participar do Reluz (Programa Nacional de Iluminação Pública Eficiente). Essa operação foi feita inicialmente em 2002, mas recebeu um aditivo de R$ 187 milhões em 2004, o que fez o município superar o limite legal de endividamento, que é 1,2 vez a receita líquida do município. Hoje, o endividamento chega a 244% da receita. O governo federal editou uma Medida Provisória em janeiro tentando regularizar a operação, que também foi realizada por outras cidades que estavam com sua capacidade de endividamento estourada. Mas, apesar dessa medida, Marta – que também nega ter desrespeitado a LRF nesse caso – ainda terá que se explicar na Comissão de Fiscalização Financeira e Controle da Câmara.

O líder do PSDB Alberto Goldman
entrou com uma representação no Ministério Público Federal pedindo a apuração de possíveis irregularidades cometidas por Marta nessa operação. O MP federal acabou entregando o
caso para a apreciação do Ministério Público Estadual. O Supremo Tribunal Federal arquivou na quinta-feira 31
uma notícia-crime protocolada por
Marta contra os tucanos Goldman
e o deputado estadual Juscelino Cardoso. Durante a campanha, eles já criticavam publicamente o comportamento administrativo-financeiro da ex-prefeita, principalmente com a proximidade das eleições.

O clima esquentou na quarta-feira 30, quando a Prefeitura de São Paulo divulgou e enviou ao Tribunal de Contas do Município (TCM) o balanço patrimonial de 2004. O TCM terá 90 dias para analisar os documentos e decidir se aprova ou não as contas da ex-prefeita. Se forem constatadas irregularidades, o relatório será encaminhado ao Ministério Público e seguirá para votação na Câmara Municipal. “A gestão de Marta foi irresponsável do ponto de vista fiscal”, analisou José Police Neto (PSDB), que como integrante da Comissão de Finanças e Orçamento da Câmara, será um dos vereadores que irão analisar o parecer do TCM. Mas o vereador tucano diz que em seus primeiros dois anos a administração petista agiu certo ao tentar corrigir os rumos, renegociando as dívidas com os credores de Pitta. “Com a saída do então secretário de Planejamento, João Sayad, na virada do segundo para o terceiro ano, a gestão Marta perdeu o controle fiscal e no segundo semestre de 2004 perdeu o controle administrativo.”

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Apagão – O tiroteio continuou às escuras, quando a empresa AES Eletropaulo cortou a energia elétrica de 85 prédios públicos municipais na quarta-feira 30, alegando que a gestão tucana atrasou o pagamento das contas de luz. O apagão tirou Serra do sério: “Quem deu o calote na Eletropaulo foi a administração do PT.” O prefeito procura se conter nas críticas desde que venceu a eleição. Já em dezembro de 2004, Serra e Marta se reuniram com o ministro da Fazenda, Antônio Palocci, para discutir a dívida de São Paulo com a União, de R$ 31,5 bilhões. Até abril, Serra teria que pagar R$ 8,5 bilhões para que a cidade se enquadre à legislação fiscal, mas o prazo foi estendido para 2016. O prefeito está pressionando o Planalto para mudar o índice de correção dos contratos da dívida. Hoje, eles são reajustados pelo IGP-DI (Índice Geral de Preços – Disponibilidade Interna) e o tucano quer a aplicação da TJLP (Taxa de Juros de Longo Prazo), a mesma taxa aplicada no Refis ou para negociação com devedores da Receita, lembra o secretário municipal de Finanças. Serra reivindica ainda para o município o mesmo porcentual de limite de endividamento dos Estados, de duas vezes a receita líquida. Hoje, as cidades não podem passar de 1,2 vez.

Não são apenas os tucanos que se divertem em ver Marta na berlinda numérica. Muitos petistas assistem de camarote ao tiroteio e o transformam em uma espécie de vingança. Durante a campanha para sua reeleição, Marta irritou a cúpula do partido ao não aceitar compor com um vice do PMDB: insistiu numa chapa puro-sangue com Rui Falcão, seu então poderoso secretário de Governo. A independência de Marta foi tamanha que ela chegou a responder com rispidez aos conselhos do presidente Lula sobre a necessidade de alianças, principalmente com os peemedebistas paulistas: “Ele está falando demais”, replicou num momento em que a popularidade do presidente balançava. As atitudes de Marta desagradaram ao homem forte do Planalto, o ministro da Casa Civil, José Dirceu. Nessa mesma época, as más línguas diziam que ela intencionava voar mais alto: deixar a prefeitura em meio ao mandato, melar o plano de companheiros e sair candidata ao governo do Estado. Coisa que pretende fazer agora de qualquer forma. Ela já anunciou que é pré-candidata ao governo de São Paulo, desafiando, mais uma vez, os planos do Planalto, que prefere o líder do governo no Congresso, senador Aloizio Mercadante. Outro petista que está de olho no Palácio dos Bandeirantes é João Paulo Cunha, ex-presidente da Câmara dos Deputados. Mais uma atitude hostil ao núcleo duro do PT foi seu discurso pós-derrota. Ela responsabilizou a política econômica do governo Lula pelo fracasso nas urnas. A artilharia tucana já faz estragos na imagem de Marta. Mas a ex-prefeita que se prepare: a guerra dentro do PT está apenas começando.


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