O Brasil é pródigo em produzir parábolas reais que ajudam a sintetizar sua realidade fantástica. A mais recente é a trajetória da chamada pílula do câncer, tornada legal na semana passada graças à assinatura da presidente Dilma Rousseff – ela mesma uma paciente da doença –, que sancionou projeto de lei vindo da Câmara dos Deputados. De tão inacreditável, a trajetória desse suposto medicamento demonstra que pelo menos um poder a droga tem: explicar como, no Brasil, absurdos nascem, se desenvolvem e se transformam em monstros com chancela oficial, desprezando ciência, leis, pareceres oficiais, bom senso ou o que mais apontar na direção contrária.

A história da fosfoetanolamina, nome oficial da poção mágica abalizada por Dilma, é torta desde a sua gênese. O composto foi criado há cerca de 20 anos por um pesquisador do Instituto de Química de São Carlos, pertencente à Universidade de São Paulo (USP), e, sem que houvesse qualquer estudo sobre seus efeitos, passou a ser distribuído informalmente a pacientes com câncer.

A partir de então, sempre no boca a boca e sem comprovação científica, ganhou fama como milagreiro e foi associado a histórias de recuperação de pacientes oncológicos. Sem nenhum registro ou autorização, o laboratório de química transformou-se em indústria de medicamentos e passou a fornecer a droga sob demanda – uma demanda crescente, baseada no desespero, na ilusão.

A produção era financiada pelos recursos da USP, que não aprovava o uso da pílula antes que se iniciasse o longo e custoso processo de testes a que todo medicamento deve ser submetido para ser liberado ao consumo público. Mesmo assim, a esperança venceu a prudência. Quando a USP decidiu proibir expressamente a sua produção, em 2014, houve uma enxurrada de ações na Justiça exigindo a continuação do fornecimento da fosfoetanolamina – hoje, estima-se que haja 15 mil processos em andamento. Então, a já popular pílula do câncer virou vitamina para ambições políticas. Foi engolida por um grupo de 26 deputados, que pariu um projeto de lei que classifica sua produção como de interesse público e autoriza que ela seja feita mesmo sem a análise da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Como uma doença contagiosa, o projeto oportunista avançou em tempo recorde no Congresso. Foi aprovado e submetido à sanção presidencial.

Começa então outro capítulo desse conto de horrores. Juntamente com a lei, Dilma recebeu de sua equipe uma série de pareceres técnicos, assinados por três ministérios, pela Anvisa e a Advocacia Geral da União. Todos recomendavam veto total à proposta, alegando que os estudos realizados até agora não apontavam nenhuma eficácia do composto no combate ao câncer. Havia apenas uma razão para o sim da presidente: evitar o desgaste de uma decisão impopular.

A Dilma presidente e a pílula, de certa forma, têm origem semelhante. A presidente foi desenvolvida em um laboratório político e difundida como parte de um tratamento milagroso para todos os males da sociedade brasileira. Seu criador vendeu ilusão, explorou a esperança
e a boa fé dos eleitores, desprezando o quadro real da nossa patologia socioeconômica. O Brasil vive hoje os efeitos colaterais desse tratamento experimental à base de doses cavalares de benefícios e pedaladas fiscais. E o governo Dilma é um doente terminal, que tenta se apegar a qualquer resquício de popularidade para se manter vivo. Dilma não poderia ser contra o milagre. Ela mesmo precisa dele.
O problema é que não existem a pílula da governabilidade, a pílula da sensatez ou a pílula do espírito público.