No momento em que quatro epidemias assustam o País, infectologista diz que falta continuidade nas políticas públicas e afirma que, com um ministro a cada nove meses, não há como encaminhar nada

A tarde da quarta-feira 6 estava especialmente agitada na clínica do infectologista David Uip, instalada num casarão em uma área nobre de São Paulo. Dezenas de pessoas aguardavam a vez de tomar a vacina contra o H1N1, um dos tipos de vírus causadores da gripe que tem atemorizado o País, particularmente São Paulo, nas últimas semanas. Tinham pegado senha para conseguir uma das cerca de 500 doses diárias que estão sendo aplicadas por lá. Outras tantas queriam a senha para os dias seguintes, enquanto os funcionários atendiam sem parar a telefonemas de pessoas em busca de informação.

 

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MOVIMENTO
Uip continua atendendo em sua clínica, em SP. Com quase 40 anos de
profissão, diz que nunca viu uma corrida tão grande por vacinas
contra a gripe como a que acontece agora

 

“Nunca vi nada igual ao que está acontecendo”, disse o médico, um dos mais experientes do País, com quase quatro décadas de prática da profissão, e atual secretário da Saúde do Estado de São Paulo. O especialista entende que a insegurança causada pelas crises política e econômica e a ocorrência simultânea das epidemias de dengue, zika e chikungunya (vírus transmitidos pelo Aedes Aegypti) contribuem para aumentar o pânico. Na quinta-feira 7, Uip foi surpreendido com uma ordem de prisão contra ele emitida pelo Ministério Público Federal de Marília, interior do estado, pelo descumprimento de ordem judicial determinando o fornecimento de canabidiol, extraído da maconha, a pacientes da cidade. O pedido se estendeu ao ministro da Saúde, Marcelo Castro.

 

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”A zika tem um fator dramático que é a síndrome da má formação
do recém-nascido. Mas acho que será um furacão e vai passar”

 

O médico critica a judicialização da saúde. “Ela custou R$ 1 bilhão aos cofres de São Paulo em 2015, e vai aumentar este ano. Há os pedidos pertinentes, mas também excentricidades que não fazem sentido. E quando uso o dinheiro na judicialização, estou tirando verba do atendimento em saúde básica.”A Secretaria informou que na sexta-feira 8 entregaria em Marília doze seringas de canabidiol, remanejadas da capital paulista.

 

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”Estou no cargo de secretário de estado há dois anos e sete meses e já passei
por três ministros (na foto, o atual, Marcelo Castro). Não dá”

 

ISTOÉ

 Por que os casos de gripe causada pelo vírus H1N1 aumentaram tanto este ano?

David Uip

 A novidade é que o período de ocorrência dos casos foi antecipado. O que se esperava acontecer no inverno começou no fim do verão. Existem algumas hipóteses que explicam isso. Uma delas seria o fato de as pessoas terem viajado para Europa e Estados Unidos e nesses lugares a estação de gripe se estendeu mais do que o habitual. Outra, e para mim as coisas são juntas, é que o índice de adesão à vacina no ano passado foi menor do que o habitual. 

ISTOÉ


 As autoridades foram pegas de surpresa com a situação?

David Uip

 Nunca vi nada igual ao que está acontecendo. Mas acho que há vários fatos que explicam o que estamos vendo. Primeiro, a antecipação da temporada. Depois, isto vem junto com três outros problemas, que são a dengue, a chikungunya e a zika. Além disso, acredito que há ligação com o momento do País. As pessoas estão inseguras, com medo, e isso é mais um fator nessa história.

ISTOÉ

 A ansiedade provocada pela crise contribui para a corrida aos hospitais e pela vacina?

David Uip

 Sim. E no quesito saúde, além de tudo, muitos perderam o emprego e o plano de saúde. E voltaram para a rede pública, que está ainda mais solicitada.

ISTOÉ

 Estamos vivendo um pânico injustificado?

David Uip

 Do ponto de vista médico não há razão para pânico com o H1N1 e nem com outros vírus, como o Influenza B. A gripe é uma doença registrada desde antes de Cristo. Vivemos grandes epidemias mundiais, o que é cíclico e esperado. É uma doença benigna, com sintomas e sinais que se auto-limitam. E uma minoria tem sua forma grave, que é a síndrome respiratória aguda. As complicações são prevalentes em populações mais vulneráveis, como pacientes imunodeprimidos, com câncer, transplantados.As mortes, que são todas muito indesejadas, ocorrem nas comorbidades, quando a pessoa tem mais de uma doença. 

ISTOÉ


 Mas o número de óbitos até agora já é mais alto do que o do ano passado.

David Uip

 Há um problema na interpretação dos dados. São Paulo tem dois milhões de pessoas com gripe e 55 mortos. Ressaltando que a morte é sempre uma coisa muito ruim, o número de óbitos versus o total de casos é pequeno. Não é diferente do que vemos na história da doença. Mas estamos tendo muita dificuldade para passar essa informação. 

ISTOÉ

As pessoas estão preocupadas em demasia?

David Uip

 É muito difícil qualificar a preocupação porque ela é individual. Quando uma pessoa perde alguém por uma complicação de gripe, para ela é uma tragédia, claro. É muito difícil, mas não é o caso de ter pânico.

ISTOÉ

 E em relação à zika? 

David Uip

 A zika parece que é muito transmissível, mas ela passa por uma explosão e vai diminuindo. E a chikungunya me preocupa porque se torna uma doença crônica.

ISTOÉ

 É mais preocupante do que a zika?

David Uip

 A zika tem um fator dramático que é a síndrome da má formação do recém-nascido. Mas o paciente com chikungunya muitas vezes se transforma em doente crônico, que passa a apresentar problemas musculares, neurais e articulares. E não dá direito para prever o que acontecerá com a evolução no número de casos. Quanto à zika, acho que será um furacão e vai passar.

ISTOÉ

 A dengue também tem chance de não ocorrer mais aqui?

David Uip

 Ela não vai embora. Por ter pelo menos quatro sorotipos do vírus causador, um prevalece um tempo, depois entra o outro. Mas as notícias de dengue em São Paulo são otimistas. O índice de infestação de casas pelo Aedes aegypti diminuiu e até o fim do mês visitaremos 100% das casas. A sociedade aderiu ao combate ao mosquito.

ISTOÉ

 As pessoas enfrentam muita dificuldade no atendimento e diariamente há denúncias de falta de material básico, como álcool gel. Por que isso continua a se repetir tanto na rede pública?

David Uip

 É preciso saber onde está faltando tudo isso. Se é em hospital municipal, estadual ou federal. De qualquer forma, isso é uma possibilidade sim. Você planeja o hospital para uma demanda e ela aumenta demais e fica tudo muito mais difícil.

ISTOÉ

 O País não está preparado para enfrentar epidemias?

David Uip

 Nem o estado de São Paulo e nenhum estado do mundo está preparado. Quando uma epidemia começa, é necessário se adaptar rapidamente. Mas não é assim. E quatro epidemias ao mesmo tempo? A situação está difícil.

ISTOÉ

 Por que chegamos a este ponto? 

David Uip

 Tudo o que está acontecendo era previsível. Com o constante desequilíbrio ecológico, é óbvio que surgirão novos vírus.  Entra-se nas matas com projetos de ocupação desorganizados, sem os cuidados que deveriam ser tomados.  Isso é um aspecto. Por outro lado, num país que têm 50% de saneamento básico, vai discutir o que? Um dia vem a conta. E ela chegou.

ISTOÉ

 Se era tão previsível, por que não foi evitado?

David Uip

 Tenho um diagnóstico claro em relação a isso. A primeira coisa é a falta de continuidade na aplicação de políticas públicas. É preciso ter um plano para o País, que pode e deve ser aprimorado. Mas cada um que entra propõe um plano novo, não tem sequência nos programas. Vi muitas coisas que foram planejadas e não aconteceram por falta de solidez de política.

ISTOÉ

 Nos últimos meses, as dificuldades ficaram mais agudas com o agravamento da crise política?

David Uip

 Não me atrevo a falar da crise política porque não é minha área. Mas tem uma coisa que me incomoda. Estou no cargo de secretário de estado há dois anos e sete meses e já passei por três ministros (Alexandre Padilha, Arthur Chioro e agora Marcelo Castro). Se fizermos a conta, cada um ficou cerca de nove meses a frente do ministério. Não tem como encaminhar nada. Não dá. 

ISTOÉ

 É um tratamento irresponsável dispensado à saúde pública?

David Uip

 O que posso dizer é que, em saúde pública, não deve ser assim. É preciso ter continuidade, um projeto. Tem que existir uma linha clara que deve ser seguida e um líder, que é fundamental.

ISTOÉ

 Como a crise econômica também está afetando o atendimento?

David Uip

 Temos recebido muito menos verba. Nos últimos dez anos, o repasse federal caiu 15%. Além disso, o governo não está credenciando novos serviços. Mas a medicina evolui. Preciso de mais leitos, de mais centros de atendimento. Sem falar da tabela SUS, que é uma excrescência. Hoje, por coincidência, vi o custo de uma bolsa de sangue. Ela custa R$ 260. O SUS paga pouco mais de R$ 130. Defendo que no sistema público de saúde precisamos reinventar a roda. A saúde vai piorar. Dizem que sou pessimista. Sinto muito. Mas eu vejo números. É preciso melhorar a qualidade de gestão, mas tem que ter dinheiro. Não se faz saúde sem dinheiro. 

ISTOÉ

 Vários especialistas, inclusive o sr., têm alertado para o crescimento de casos de doenças sexualmente transmissíveis como a Aids e a sífilis. O que ocorre? Falta informação?

David Uip

 Ninguém vai se atrever a me dizer que as pessoas não estão informadas sobre Aids. Mas ter informação não significa que as pessoas mudem comportamento. Não tem um dia em que não veja casos novos da doença. As pessoas não querem usar preservativo. Além disso, há um estrondoso aumento dos casos de sífilis, HPV, herpes tipo 2. E o pico de aumento é na população mais jovem.

ISTOÉ

  As campanhas são ineficazes?

David Uip

 Que campanha? Quando você ouviu falar de Aids pela última vez? No dia primeiro de dezembro, que é o Dia Mundial da Aids. E eu falei no carnaval. E só.


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