A tarde estava ensolarada naquela sexta-feira 29. Lá embaixo, a imensidão da selva Amazônica. O americano Joseph Lepore, 42 anos, piloto desde 1984 com oito mil horas de vôo, comandava o Legacy-600, jato corporativo da Embraer, adquirido pela empresa de táxi aéreo ExcelAire Service três dias antes por US$ 25 milhões. A aeronave saíra de São José dos Campos (SP) e voava com destino a Miami, com escala em Manaus. Ele e seu co-piloto, o também americano Jan Paul Paladino, 34 anos, piloto desde 1996 com 6.400 horas de vôo, pareciam garotos que acabavam de ganhar um presente novo.

Tudo indica que os americanos se comportavam como se apenas eles estivessem por ali e procuravam levar ao limite todos os recursos que um jato como aquele pode oferecer. Subidas rápidas, curvas emocionantes. Especialistas acreditam que, para ficar mais à vontade para fazer suas “estripulias” aéreas, os pilotos podem ter desligado o “transponder”, equipamento que transmite aos controladores de vôo os dados sobre o avião e sua rota.

Mas, bem distante do que é um sofisticado parque de diversões, eles estavam
voando a 37 mil pés (11,2 mil metros) de altitude. Deveriam estar a 36 mil pés (10,9 mil metros). O Legacy ocupava a aerovia UZ6, uma espécie de avenida espacial. O detalhe é que a UZ6 é uma avenida de mão dupla. Os aviões que seguem rumo ao Norte devem manter altitudes pares, enquanto os que voam para o Sul devem manter altitudes ímpares. A diferença de altitude levaria ao encontro trágico. Naquela rota, em via contrária, estava o Boeing 737-800 da Gol, que fazia o vôo 1907 vindo de Manaus com destino ao Rio de Janeiro, e escala em Brasília. Momentos antes do acidente, o Cindacta-1, que controla o tráfego aéreo da região, detectou que havia algo de errado. Pelo plano de vôo do Legacy, só poderia ser ele em altitude incorreta. Por cinco vezes, os controladores de vôo tentaram entrar em contato com os pilotos americanos. Foi em vão. Eles não atendiam.

O relógio marcava perto das cinco e meia da tarde quando Lepore saiu da cabine para ir ao banheiro. Deixava a aeronave no piloto automático. Antes de reassumir o comando, Lepore parou para trocar amenidades com os passageiros – eram cinco: dois executivos da Embraer, o vice-presidente executivo da ExcelAire, David Rimmer, além do jornalista americano Joe Sharkey. Quando Lepore voltou ao assento, um violento solavanco tomou o avião, seguido por um forte estrondo. Por segundos, fez-se um silêncio ensurdecedor. “Fomos atingidos!”, gritou um dos passageiros, que estava em pé no corredor perto da cabine. O choque fez a aeronave voltar ao controle manual. Lepore passou o comando a Paladino. Durante 30 minutos, o Legacy perdeu velocidade e pousou sem maiores problemas na Base Aérea da Serra do Cachimbo.

No Boeing da Gol, a situação atingiu níveis gradativos de desespero. Cenas de horror eram protagonizadas pelos 154 ocupantes do avião abatido em pleno ar. Atingido, uma pequena parte de sua asa esquerda foi cortada pela ponta da asa do Legacy. Os destroços atingiram a cauda do Boeing e, a 800 quilômetros por hora, o avião perdeu completamente o controle. Começou um mergulho final, em parafuso, rumo à floresta. Enquanto caía desgovernado, o Boeing ganhava velocidade e começava a se desmanchar no ar. Técnicos da Aeronáutica estimam que o mergulho fatal durou intermináveis três minutos. Consumava-se a maior tragédia da aviação civil brasileira: 154 mortos. Alguns passageiros foram lançados para fora do avião e encontrados enterrados a quase meio metro de profundidade. Corpos dilacerados ficaram espalhados por um raio de pelo menos 20 quilômetros na região da Serra do Cachimbo, em Mato Grosso.

Sem nenhum ferimento, mas assustados, os pilotos e ocupantes do Legacy ainda conversavam sobre as avarias nas asas do jato quando, três horas depois do acidente, souberam que um Boeing havia caído na selva. Para eles, começava ali o desafio de narrar uma história coerente e que possa ser comprovada pelas investigações. Para as famílias dos 154 mortos no vôo 1907 começava um drama muito maior, capaz de deixar cicatrizes eternas. Na última semana, enquanto militares da Aeronáutica, índios e voluntários vasculhavam a mata densa em busca de restos mortais, as famílias das vítimas tinham muito a lamentar e a recordar.

PREMONIÇÃO MACABRA – “O avião do papai vai cair.” A frase foi dita por Hannah, uma garota de 6 anos, a Gê, sua professora, uma semana antes da tragédia. Assustada com a conversa, a professora comunicou a Dalva Kowalski, mãe de Hannah, o acontecido. Dalva não deu ouvido. “Coisa de criança”, teria dito ela. Na sexta-feira 29, por volta das 16h30, a menina voltou à carga, desta vez com uma amiga do prédio onde mora em Brasília, agora com a frase no presente. “O avião do papai explodiu”, disse. A babá da vizinha de Hannah ouviu a conversa das duas crianças e quis saber que história era aquela. A menina se calou. Presságio ou não, o fato é que naquele exato momento o pai de Hannah, o alemão Andreas Kowalski, despencava de uma altura de 11 mil metros em plena selva amazônica junto a outros 153 corpos.

Antropólogo, Andreas Kowalski, 43 anos, ocupava o assento 2-B do Boeing. Era casado com a maranhense Maria Dalva e tinha a floresta como segundo lar. Durante dois anos, ele morou com os índios Canela, próximo ao local do acidente. “Ele adorava tudo quanto era desafio”, disse Dalva a ISTOÉ. “Morreu justamente na floresta”, consola-se. Os índios, de quem Andreas tanto gostava, foram fundamentais para o resgate dos corpos espalhados pela Floresta Amazônica, ao lado de 110 militares da Força Aérea Brasileira (FAB) e do Exército. A tragédia também bateu à porta da família dos Rezende, moradores de Anápolis (GO), com a morte da jovem Francielle Mendes Rezende, 22 anos. Filha mais velha de uma prole de três, “Fan” – como é carinhosamente lembrada pelos mais próximos – era estudante do terceiro ano da Universidade Federal de Medicina em Manaus. Ela era a face vitoriosa de uma família cujo pai sobreviveu pedindo esmolas e catando papel nas ruas de Goiânia. Mesmo na miséria, a família Rezende conseguiu dar educação a Francielle. “Ela passou entre os primeiros no vestibular”, orgulha-se o pai. Impossibilitada de trabalhar, por causa das aulas em dois períodos, o sustento dela vinha da labuta da mãe nas vendas de algodão doce e na organização de festas de crianças. Nos últimos dias, Francielle participava de um projeto universitário que cuida da saúde das populações ribeirinhas do rio Negro e vivia a expectativa de começar a especialização em cirurgia plástica. Apaixonada pelo pai, Fan queria fazer-lhe uma surpresa no último fim de semana. Ela iria chegar de viagem sem avisá-lo. Não conseguiu.

Com um choro doído, João Rezende fala da filha que viu pela última vez há um ano, e diz que também foi acometido pela praga do pressentimento. “Naquela sexta-feira à tarde, cochilei no escritório e acordei assustado com um sonho que quase me derrubou da cadeira. Eu estava escorregando para um buraco profundo e escuro para ajudar a Fan, que pedia por socorro”, lembra. “Era a hora de sua morte”, diz João. Histórias como as de Andreas e Francielle somam-se a outras dezenas, no Hotel Confort de Brasília, onde a empresa Gol reuniu boa parte dos familiares dos mortos no acidente. Lá, por exemplo, estão a mulher, a mãe e o irmão do paulista Plínio Siqueira, 39 anos, que vivia em Campinas, e ocupava a poltrona 8-C no Boeing da Gol.

Diretor financeiro de uma multinacional, Plínio acumulava milhares de milhagens na rotina das viagens aéreas. “Estava constantemente nessa rota”, lembra a mãe, que ainda chora a morte do marido ocorrida há seis meses. Amante dos esportes radicais e de motos potentes, Plínio há pouco tempo viu-se diante da morte quando ele e sua mulher, Angelita, foram assaltados em Campinas. Com uma metralhadora na cabeça, os dois foram obrigados a entregar a moto aos bandidos. “Sobrevivemos à violência urbana e ele morre num desastre desses”, desabafa Angelita. O jovem Átila Assad, 24 anos, assim como Francielle, estudava medicina e vinha para casa dos pais nas férias. Atila, que teve o corpo reconhecido na quinta-feira 5, tinha urgência em chegar a Rubiataba, interior de Goiás: “Ele não queria deixar de votar e iria anunciar o seu casamento na sua festa de aniversário”, lembra a tia Naila Jorge.

Tão dramática quanto a confirmação da morte de um filho querido é a agonia de não se saber exatamente o que ocorreu e conviver com a remota esperança de haver sobreviventes. Na segunda-feira 2, para tentar amenizar esse sofrimento, um grupo de oito familiares de passageiros foi levado até o local onde se espatifou o Boeing. “Aquilo é um inferno. O calor é terrível, as abelhas grudam no corpo. Há pedaços de avião por todos os lados e andar na selva é impossível. Com certeza ninguém sobreviveu.” Com essa descrição, Mauro Siqueira fez o comunicado oficial do grupo aos demais familiares.

ERROS FATAIS – Enquanto os pais e filhos choram seus mortos, trava-se uma batalha para se provar quais são os verdadeiros responsáveis pela tragédia. Falhas nos equipamentos estão praticamente descartadas. Oficiais da Aeronáutica já sabem, por exemplo, que, logo depois de ter atingido o Boeing, os pilotos do Legacy fizeram contato via rádio. Ou seja, o equipamento estava funcionando.

Apontados por muitos como imprudentes, os pilotos Joe Lapore e Jan Paladino tiveram seus passaportes apreendidos pela Polícia Federal e estão impedidos de deixar o Brasil. Prestaram vários depoimentos à polícia e negaram que tivessem desligado o “transponder” do Legacy. Eles dizem que não conseguiram estabelecer contato com os controladores de vôo e que, por isso, mantiveram a aeronave na altitude de 37 mil pés. Mas, segundo especialistas da FAB, nesses casos os pilotos têm a obrigação de manter o plano de vôo original. No caso do Legacy, ele deveria, na região de Brasília, baixar o avião para uma altitude de 36 mil pés, o que comprovadamente não foi feito.

Os investigadores já sabem que o piloto do Boeing 737-800 recebeu informações
dos operadores de vôo do Cindacta 4 (Manaus) de que existia outra aeronave na mesma aerovia. Como o “transponder” do Legacy estava desligado ou com
defeito, não era possível saber que a aeronave da Embraer estava na contramão.
O Boeing, portanto, navegava dentro das normas. Segundo investigações realizadas pelo Cindacta 1 e 4, os pilotos Lepore e Paladino ignoraram as recomendações
do sistema de controle do tráfego aéreo. Vários vôos comerciais estavam nas proximidades e o exame das gravações dos registros não acusam nenhum problema de comunicação nas proximidades da Serra do Cachimbo. Especialistas afirmam
que alguns pilotos se utilizam do expediente de desligar o sistema quando querem sumir do raio dos radares.

Ainda não existe nenhuma acusação formal contra os americanos que levavam o Legacy para Miami, mas os dois já contrataram o advogado criminalista José Carlos Dias para defendê-los. “Eles não fizeram estripulias no ar nem desligaram o transponder”, diz Dias. A ExcelAire, empresa americana proprietária do Legacy, se pronunciou na noite da quinta-feira 5. Em nota encaminhada à imprensa afirma que são “inverídicas, absurdas e ultrajantes” a versão de que os pilotos desligaram o transponder para “brincar”. Alega que eles não mudaram de altitude porque não conseguiram entrar em contato com os controladores de vôo. O que a Aeronáutica e a Polícia Federal já investigaram desmente essa versão.