Editor que inspirou filme "Spotlight", vencedor do Oscar, fala que nada foi feito contra os abusos sexuais na Igreja Católica e discute o papel da imprensa nas sociedades livres
Mariana Queiroz Barboza
03/03/2016 - 14:00
Em 2009, quando dois jovens produtores de cinema entraram na sala do jornalista Martin Baron, 61 anos, então editor-chefe do Boston Globe, com a ideia de levar às telas uma série de reportagens que o jornal americano havia feito sobre abusos sexuais de padres da Igreja Católica contra crianças, Baron os recebeu com ceticismo.
Futuro: Baron diz que a internet representa um imenso desafio para a imprensa
Sete anos depois daquele encontro, o jornalista estava na plateia do Oscar para testemunhar a consagração de “Spotlight: Segredos Revelados”, vencedor, no domingo 28, na categoria “Melhor Filme”. Durante a produção da obra, os católicos ganharam um novo papa, mais carismático que o anterior, e novas denúncias contra os padres surgiram em diversas partes do mundo.
“O Papa Francisco pode ser um reformador, mas temos que esperar
para ver o quanto ele está disposto a fazer mudanças”
Em 11 anos no Boston Globe, Baron, hoje editor-executivo do Washington Post, acumulou seis Pulitzers, o prêmio mais importante do jornalismo. No Post, Baron liderou a também premiada divulgação de documentos secretos pelo ex-espião Edward Snowden e que provocou um escândalo contra a agência americana de espionagem, a NSA. Na semana passada, ele conversou com a ISTOÉ.
“Jeff Bezos (dono da Amazon e do Washington Post) nunca sugeriu uma matéria
para nós, nunca comentou o que escrevemos”
ISTOÉ –
Como foi ver “Spotlight” vencer o Oscar?
Baron –
Foi um prazer. Ficamos todos surpresos, não sabíamos o que podia acontecer, mas foi incrivelmente gratificante. Espero que, com o prêmio, o filme tenha um impacto duradouro.
ISTOÉ –
Qual foi o seu papel na produção do filme?
Baron –
Não sou um produtor de cinema, então meu papel foi basicamente dar entrevistas. Quando o estúdio adquiriu os direitos de nossa história, concordamos em participar de todas as entrevistas e ajudá-los a reconstruir o que aconteceu no Boston Globe naquela época. Gastamos horas e horas com o diretor, Tom McCarthy, e o co-roteirista, John Singer. Além disso, quando eles finalizaram o roteiro, dividiram o material comigo e meu antigo colega do Globe. Nós o revisamos, demos mais ideias e eles acataram algumas. Então, pudemos ver uma versão não-finalizada do filme e também palpitamos.
ISTOÉ –
Qual foi sua reação quando assistiu ao filme pela primeira vez?
Baron –
Foi maravilhoso. Fiquei emocionado e, na verdade, com lágrimas nos olhos. Foi emocionante ver que o mundo todo saberia da história do trabalho que fizemos e apreciaria melhor a questão do abuso sexual dentro da Igreja Católica. Minha esperança é que o público desse mais valor ao papel do jornalismo em nossa sociedade e nos desse mais oportunidades de explorar malfeitos e trazê-los à luz.
ISTOÉ –
Como é ver alguém interpretando seu papel no cinema?
Baron –
É muito esquisito ver outra pessoa tentando captar seus maneirismos, seu jeito de falar, seu comportamento. A impressão do mundo sobre você será moldada mais pelo que aparece naquela tela por duas horas do que por provavelmente tudo que você fizer ao longo da vida.
ISTOÉ –
O filme mostra seu encontro com o cardeal Bernard Law, no auge da investigação do Boston Globe. Como foi a conversa?
Baron –
Quando cheguei a Boston, era parte do meu trabalho conhecer pessoas proeminentes da cidade. Fui à casa dele, que sabia que estávamos investigando a Igreja. Ficou claro que nenhum de nós tocaria no assunto. Ele focou muito no Oriente Médio, sabendo que eu era judeu. Quando estava saindo, ele foi à prateleira de livros, pegou o Catecismo, me entregou e disse: “É nisso que acreditamos.”
ISTOÉ –
Que tipo de retorno o sr. teve depois da série de reportagens?
Baron –
A Igreja pediu desculpas. Fizeram um anúncio reconhecendo que membros da comunidade católica se sentiam traídos, prometeram reformas. Mas também descreveram esses abusadores como um grupo pequeno de pessoas e disseram que era um assunto do passado. Como a investigação revelou mais tarde, essa não era uma questão do passado, mas do presente também, e que envolvia dezenas e dezenas de pessoas.
ISTOÉ –
O sr. acha que o Papa Francisco pode ser um reformador?
Baron –
Ele pode ser um reformador e deveria ter um papel maior na questão dos padres pedófilos. Temos que esperar para ver o quanto estará disposto a fazer nesse ponto. Ainda há perguntas sobre quão enérgica a Igreja vai ser. Uma coisa é lidar com padres que abusam, mas temos que perguntar: e os bispos que sabiam de tudo e mantiveram os abusadores em atividade? Essa é uma pergunta aberta há 14 anos. Até agora, pouco foi feito.
ISTOÉ –
O que está pendente?
Baron –
Não temos visto coragem dos bispos nesse tema. O que vimos foi negação, rebeldia, obstrução.
ISTOÉ –
No Brasil, alguns padres foram processados por pedofilia, mas a impunidade é a regra. E nos EUA?
Baron –
Os casos de abuso são agora submetidos à aplicação da lei. Ao longo das décadas, a Igreja se referiu aos abusos não como uma questão criminal. Diziam que a lei não tinha jurisdição sobre a Igreja, que era uma questão de leis internas. Mas estuprar uma criança é crime nos EUA.
ISTOÉ –
É possível apostar em jornalismo investigativo diante da queda das receitas do mercado editorial?
Baron –
É muito difícil. As receitas dedicadas ao jornalismo investigativo sofreram muitos cortes por causa das pressões financeiras da indústria. Alguns editores concluíram que não podem mais pagar por esse tipo de jornalismo, porque não há retorno financeiro. Mas acho que esse é um erro de cálculo. Nossos leitores querem que façamos esse tipo de trabalho. É parte de nossa identidade.
ISTOÉ –
Em tempos de redes sociais, as pessoas consomem notícia como nunca. Ao mesmo tempo, elas querem tudo de graça. Como podemos engajar novos leitores?
Baron –
Esse é um dos maiores desafios de nossa profissão. Como em outros veículos, no Washington Post temos um “pay wall” (sistema digital de assinatura) em nosso site. As pessoas podem ler cinco matérias por mês gratuitamente, porque queremos criar leitores que gostem de acessar nosso site. São essas pessoas que apóiam nossa missão e sabem que, ao pagar, elas contribuem para fazermos nosso jornalismo. Ainda é um percentual pequeno dos nossos usuários, mas acho que poderemos construir uma base substancial de assinantes online.
ISTOÉ –
Desde que Jeff Bezos, presidente da Amazon, comprou o Washington Post, a empresa investiu mais no digital. Teve algum resultado?
Baron –
Teve no sentido de que estamos crescendo num ritmo impressionante. Ano a ano, nosso crescimento é de 70% em visitantes únicos de nosso site e de todas as nossas plataformas digitais nos EUA. Atingimos um pico de 76 milhões de visitantes únicos em dezembro, foi um marco. Em outubro de 2015, ultrapassamos o New York Times no total de visitantes únicos nos EUA. Esperamos continuar fazendo progresso ao tentar converter alguns desses leitores em assinantes.
ISTOÉ –
Bezos cobra resultados?
Baron –
De uma maneira diferente de outros líderes da indústria da mídia. Ele investiu substancialmente no Washington Post, grande parte em projetos de experimentação, e acho que tivemos sucesso com eles. Foi isso que impulsionou o crescimento que tivemos em nosso site e em outras plataformas digitais. Ele traz não só capital financeiro, mas também capital intelectual.
ISTOÉ –
Qual é o nível de interferência de Bezos no que o Post publica?
Baron –
Nenhum. Ele nunca sugeriu uma história para nós, nunca comentou em matérias que escrevemos além de dizer que gostou de lê-las.
ISTOÉ –
O sr. se encontra regularmente com Bezos?
Baron –
Nos falamos por telefone a cada duas semanas e nos encontramos em Seattle de seis em seis meses. Periodicamente ele vem a Washington.
ISTOÉ –
O jornal impresso vai desaparecer um dia?
Baron –
Um dia certamente, mas acho que ainda vai demorar. Não sei quando vai acontecer. O fato é que as pessoas que ainda lêem jornais em papel hoje em dia são ligadas a esse tipo de experiência. Elas não querem ler na internet, no celular ou tablet. Nós amamos esses leitores. São assinantes leais e nos dão muito dinheiro. Queremos ter certeza de que damos a eles um produto de alta qualidade. Eles vão continuar nos acompanhando, por isso acho que o impresso vai existir por mais uns anos. Não sei quando vai desaparecer, mas o impresso não representa o futuro de nosso negócio.
ISTOÉ –
O que mantém seu entusiasmo com o jornalismo até hoje?
Baron –
Acredito no papel da imprensa numa sociedade democrática. Somos essenciais a uma democracia que funciona bem. Devemos ser independentes. Ao mesmo tempo, estou muito animado com as transformações pelas quais nossa indústria passa. Reconheço que elas sejam um desafio financeiro mas estamos atingindo leitores que não seríamos capazes de atingir antes.