A exposição pública da vida íntima de famosos e anônimos nos tablóides ingleses é uma tradição quase tão conhecida quanto a presença da família real na missa da manhã do dia de Natal. Mas quando em 2007 Clive Goodman, então editor da cobertura da família real do tablóide “News of the World”, foi descoberto escutando recados de telefone de três funcionários do Palácio de Buckingham, teve início uma guerra que revelou ao mundo o quão nefasto pode ser o sensacionalismo.

CULT-01-IE.jpg
PELA FRESTA
O ”News of World”, fechado em 2011 por seu dono, Rupert Murdoch,
deixou entreaberto um veio de abusos e crimes da imprensa. Muitos
dos envolvidos foram promovidos pelo milionário 

O livro “Vale Tudo”, que chega agora ao Brasil, conta com detalhes os bastidores do escândalo dos grampos que começou na Inglaterra, fazendo com que as empresas anunciantes cancelassem suas parcerias com os títulos acusados de escuta ilegal, provocando revisão das leis de regulação da imprensa e obrigando o primeiro ministro James Cameron a reconhecer o comprometimento do governo com as ações criminosas. O crescimento das descobertas de estratégias obscuras de obtenção de notícias – como invasão em caixa postal de crianças assassinadas – , alcançaram repercussão mundial, derrubando ações do grupo na bolsa, enterrando negócios milionários e mudando a geopolítica nos negócios de Rupert Murdoch, um dos mais poderosos empresários de comunicação do mundo, com tentáculos em quase todos os continentes.

O livro traz sete anos de trabalho de Nick Davies, repórter do “Guardian” à época que ficou incomodado com a explicação oficial de que um jornalista e um detetive particular tinham descoberto sozinhos uma forma de invadir caixas postais para obter furos e sepultado as carreiras por causa de informações dos celulares de três funcionários que orbitavam a realeza. Com o apoio do jornal, Davies se municiou de provas que sustentassem as evidências que encontrou no caminho. Provou que, diferentemente das oito vítimas anunciadas pela Scotland Yard no processo de 2007, os grampos tinham prejudicado ou destruído cerca de 2 mil pessoas. Mostrou também que, ao contrário do que foi alegado e tomado como verdade na época, era sim o alto escalão dos jornais da News Corp que partiam as decisões de quebra ilegal de sigilos da contratação de detetives e das ações de espionagem industrial contra a concorrência.

01.jpg
MANOBRA
Rupert Murdoch (acima) fechou o ”News of the World”, com uma
ediçãode despedida. Antes disso, simulou um vazamento de
informações sobre o caso das escutas ilegais

Andy Coulson era editor-chefe do tablóide quando Clive Goodman a e o detetive particular Glenn Mulclaire firam julgados culpados. Ele alegou nunca ter ouvido nada sobre escutas na redação que chefiava. Ainda assim pediu demissão da corporação “pois sentia que era seu dever.” Coulson, condenado em junho do ano passado pelas escutas, deixou a sala envidraçada do “News of World” para chefiar a comunicação de David Cameron.

O livro vai além do noticiário ao emiuçar as estratégias do clã Murdoch para salvar os negócios mais lucrativos e os profissionais de seu círculo próximo. Davies conta como o fechamento espontâneo do “News of the World” no auge dos escândalos atenuou o bombardeio. E como Murdoch conseguiu salvar Rebekah Brooks, jornalista no comando de alguns dos títulos em momentos de avalanches de notícias obtidas por escuta ilegal. Como o colega (e amante) Andy Coulson, Rebekah esteve no banco dos réus. Diferentemente de Coulson, a ruiva não deixou indício material de seu envolvimento com as operações ilegais. Acusada de formação de quadrilha, foi absolvida. O livro já estava pronto quando, em setembro do ano passado, ela foi promovida por Murdoch à CEO do News UK, o mais alto posto do jornal do grupo. Sua primeira ação foi contratar para o cargo de conselheiro Angus McBride, o advogado que conseguiu sua absolvição em 2014.

IE2411pag60e61_CulturaNews-2.jpg
BASTIDORES
Nick Davies (acima) detalha em novo livro os bastidores de uma investigação de sete anos

FOTOS: Tom Stoddart/Getty Images; AP Photo/Louis Lanzano; Judy Goldhill