12/02/2016 - 20:00
Desde o dia 5 de novembro, o promotor de Justiça do Ministério Público de Minas Gerais Mauro Ellovitch envia equipes que se revezam para vistoriar, ouvir testemunhas e redigir laudos sobre a tragédia ocorrida na cidade de Mariana, em Minas Gerais, após o rompimento das barragens de rejeitos controladas pela mineradora Samarco, pertencente à Vale e à BHP Billiton. São meses coordenando equipes que estiveram diante das vítimas do maior desastre ambiental do País.
PERIGO
O promotor de Minas Gerais alerta que há riscos de novos rompimentos de barragens
Segundo Ellovitch, há riscos concretos de novos rompimentos, uma vez que as barragens não atingiram o nível de estabilidade exigido. Apesar de estar submetida a multas diárias de R$ 5 milhões, a Samarco ainda resiste em fazer um acordo com a Justiça. “A empresa fala em termos genéricos, não consegue apresentar soluções urgentes”, diz Ellovitch. Além disso, o promotor prevê um cenário nada promissor ao País. “O Brasil vive um acentuado processo de retrocesso na legislação ambiental”, diz. Ancoradas na flexibilização das leis do setor, empresas multinacionais chegam aqui e encontram terreno fértil para impor as próprias regras. “Os brasileiros se tornaram reféns dos empreendimentos econômicos”, afirma.
”O fator econômico é utilizado para impor projetos de maneira degradante.
O foco hoje está em conceder licenças ambientais cada vez mais rápido”
Para sair do mar de lama e descaso que parte da iniciativa privada e do poder público impõem, além de investimento nos órgãos ambientais, o agente da Justiça afirma que o financiamento privado de campanha ajudará a diminuir a “ingerência” na legislação ambiental.
”A disponibilidade de água está ameaçada por uma
legislação permissiva e pela falta de fiscalização”
Há poucos dias houve uma nova movimentação de lama em Mariana. Há riscos de rompimento em outras barragens?
Houve uma movimentação que ocorreu num dique remanescente de Fundão. Isso demonstra uma situação de falta de estabilidade das barragens existentes. Elas não estão seguras, não alcançaram o parâmetro de segurança considerado normal para uma barragem de rejeito. Há riscos de novos rompimentos e existem trabalhadores e comunidades que podem ser impactados. O princípio da precaução nos obriga a trabalhar com os piores cenários possíveis. Não podemos nos dar ao luxo de sermos otimistas. A Samarco apresentou um plano de emergência que prevê as consequências de um rompimento. Mas até hoje não foi apresentado um estudo com ações para mitigar esses impactos. Há uma inércia e a Samarco não dá respostas com a velocidade necessária.
O que os profissionais da Samarco alegam?
Eles alegam não saber a causa do rompimento. O que percebemos é que a empresa não quer tomar nenhum posicionamento em relação às causas da ruptura. A principal dificuldade que temos tido com a equipe da Samarco é em relação à reparação dos danos já ocorridos e a possíveis novos impactos. A empresa fala em termos genéricos, não consegue apresentar soluções.
Há um afrouxamento dos governos estadual e federal na cobrança de uma punição e na responsabilização da Samarco?
Os órgãos ambientais, tanto estaduais quanto federal, foram ao local, colheram impressões e emitiram autos de infração. Mas temos um grande problema de efetividade na nossa legislação, ela não é eficiente para dar resposta jurídica necessária em caso de desastres ambientais. Além disso, os valores para as infrações ambientais por iniciativa do Estado são pequenos. São insuficientes para esse tipo de desastre. E o procedimento para executar as multas é burocrático e moroso. Isso gera uma sensação de ineficácia para a população.
O estado de Minas Gerais tinha apenas quatro funcionários para a fiscalização de barragens. Como deveriam ser feitas as fiscalizações em mineradoras?
Isso é um problema gravíssimo. Um dos principais fatores de risco e danos ambientais é o subdimensionamento dos órgãos de controle ambiental. Não existem pessoas suficientes para atender às demandas. Há poucos funcionários, mal remunerados, sujeitos a todo tipo de pressão. O poder público investe mais para acelerar as obras do que para fiscalizar. Há uma potencialidade desastrosa do cenário se agravar para as próximas gerações. O foco hoje está em conceder licenças cada vez mais rápido do que em fiscalizar.
O que deveria mudar no processo de funcionamento de barragens no Brasil?
Os órgãos ambientais precisam de estrutura e recursos para fiscalizar de forma sistemática. Além disso, seriam fundamentais medidas coercitivas, punitivas e ágeis no caso de descumprimento de uma determinação. Se uma empresa deixa de apresentar o relatório de estabilidade de barragem deveria sofrer sanções graves. As penas dos órgãos ambientais são muito pequenas considerando o tamanho e a relevância do dano. No caso da Samarco, foram feitas alterações na barragem sem comunicação com os órgãos ambientais. Isso facilitou o rompimento. Não há no Brasil um diagnóstico preciso de barragens em situação de risco.
A tendência de acelerar o licenciamento ambiental aumentou nos últimos anos?
Visivelmente. Existem muitos projetos de lei e medidas administrativas para agilizar o licenciamento e diminuir os requisitos exigidos, ao invés de aprimorar os procedimentos. A tendência de flexibilizar as regras recai no risco de novos desastres ambientais. O Brasil vive um acentuado processo de retrocesso da legislação ambiental. O Código Florestal de 2012, por exemplo, vai gerar perda de recursos ambientais pelas próximas décadas. Vivemos um momento muito perigoso.
Como o senhor vislumbra o Brasil, numa perspectiva sócio-ambiental, daqui alguns anos?
Teremos consequências terríveis. A crise hídrica é um reflexo disso. Não adianta só falar em captação de água nos reservatórios, se não há água suficiente para alimentá-los. A legislação permite a intervenção em áreas de preservação como nascentes, topos de morro e áreas de aqüíferos. Não adianta só economizar na torneira urbana se a maior parte do recurso é utilizada pela indústria. Esse consumo precisa ser controlado. Hoje vemos todos os reservatórios com níveis alterados. A disponibilidade hídrica está ameaçada por uma legislação mais permissiva e a falta de estrutura de fiscalização.
Qual país, em sua opinião, tem uma legislação ambiental avançada?
Nos Estados Unidos há menos legislação ambiental formalmente apresentada, mas há muito mais normas dos órgãos de fiscalização. Eles têm procedimentos mais rigorosos. As empresas têm auditorias mais objetivas e aprofundadas. Há uma cultura de transparência, obediência às normas para evitar ilegalidades, maior do que a nossa. O maior problema do Brasil é a flexibilização das normas. Muitas multinacionais vêm apresentar no País projetos mais impactantes do que apresentariam em outros lugares.
E de que forma isso gera consequências para o País?
As empresas de fora utilizam a questão econômica, a geração de empregos, para colocar a sociedade como refém de um projeto, ao invés de adequar o empreendimento às legislações ambientais. O fator econômico é utilizado para impor projetos de maneira mais degradante do que seria necessário. Assim, os brasileiros são reféns de empreendimentos ambientais. É um problema endêmico. Presenciei empresas dizerem: “se tivermos que colocar um filtro novo, não vamos ficar aqui”. Não se pode ceder às chantagens desses empreendimentos. As empresas absorvem o bônus e deixam o ônus à sociedade. São posições extremadas que não correspondem à realidade.
Como o senhor vê a oposição entre discurso econômico versus ambiental?
Precisamos romper esse mito. Ninguém prega que deva cessar a atividade mineraria ou que não se deva fazer empreendimentos hidrelétricos. O que se questiona é a exploração de uma forma insustentável, sem os devidos estudos de controle ambiental. Precisamos acabar com essa ideia de que se desenvolvemos uma atividade econômica não desenvolvemos também o meio ambiente. A variável ambiental precisa ser levada em conta. É equivocado autorizar uma atividade simplesmente pelo argumento de que ela é necessária. Isso é superficial.
Se um desastre como o de Mariana ocorresse em outro país, o que aconteceria?
Em países que tem uma cultura corporativa diferente, a adoção de providências pela empresa seria mais objetiva. No ano passado, a Volkswagem, fraudou, nos EUA, resultados em testes de poluentes e a responsabilização foi mais imediata. Ela reconheceu o erro e adotou providências de maneira mais ágil. É diferente do procedimento utilizado aqui. O Brasil está longe dessa realidade, principalmente pelo rumo que estamos tomando de fragilizar os mecanismos de controle ambiental.
O senhor prevê desastres de grandes proporções em outras obras ambientais, como na polêmica construção da usina de Belo Monte?
Várias condicionantes e estudos não foram apresentados e o empreendimento continua avançando e obtendo licenças. Isso reflete outro problema mais amplo: os estudos ambientais não são analisados com a devida seriedade, são considerados burocracia. As condicionantes são vistas como algo acessório. Os empreendimentos descumprem as determinações e não há consequências jurídicas. A empresa responsável deveria perder sua licença. Não temos a cultura de valorizar o licenciamento ambiental.