Entre imagens de santos e a mobília antiga do paladar San Cristóbal, garçons circulam com um minúsculo broche, preso à camisa branca, no restaurante que funciona na casa de Carlos Cristóbal Valdés, em Havana. Perto do coração e da gravata borboleta, o pin de lapela estampa uma imagem improvável: bandeirinhas de Cuba e dos Estados Unidos cruzadas, como países amigos e pacificados. Há pouquíssimo tempo, isso seria impensável na terra dos irmãos Fidel e Raul Castro. Os garçons e o restaurante seguramente teriam sido acusados de fazer apologia ao imperialismo. “Os funcionários da embaixada americana nos presentearam”, conta um deles, tranquilamente, após servir malengas, tubérculo típico local. No clima de expectativa, os cubanos se preparam para uma nova Cuba. Um ano após a aproximação bilateral, os Estados Unidos anunciaram, na terça-feira 26, novas medidas para facilitar as exportações e as viagens de americanos à Ilha.

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BANDEIRINHAS AMIGAS
Gançons do restaurante San Cristóbal usam o pin Cuba-USA,
presente dos funcionários da embaixada americana em Havana

A ansiedade reluz no rosto sorridente de Alian Alarcon, funcionário do restaurante russo Nazdarovie, no terceiro andar de um velho prédio com vista para o Malecon, a avenida murada de oito quilômetros de extensão construída na orla de Havana. Alian diz que o restaurante soviético, aberto há um ano, teve triplicada a visita de turistas americanos nos últimos meses. “Eles veem pelo México. Os americanos se encantam e dizem: ‘Apenas 90 milhas nos separam, e, o que os cubanos têm de tão ruim assim que os Estados Unidos ainda dificultam tanto a nossa vinda?’” No ambientes desses estabelecimentos conhecidos como paladares – neologismo para definir restaurante em casa, cunhado a partir da novela “Vale Tudo”, da Globo, na qual a personagem de Regina Duarte era dona do restaurante “Paladar” -, é possivel medir o quanto a abertura e o fim do embargo econômico, conhecido pelos cubanos como “el bloqueo” são aguardados em contagem regressiva. Desde que ganhou força em 2010, um dos mais visíveis efeitos do programa de reformas do presidente Raul Castro, que sucedeu o irmão mais velho, em fevereiro de 2008, tem sido a multiplicação dos paladares em Havana – uma concessão do Estado à moradores para explorar suas casas comercialmente e reforçar o orçamento familiar. Os turistas já combinaram com os russos. Agora falta combinar com o Congresso americano. Na semana passada, os EUA deram a largada ao processo de liberação de viagens para a pátria do socialismo nas Américas.

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24 HORAS DA CALIFÓRNIA ATÉ CUBA – A epopeia que representa para um americano visitar Cuba foi sentida na pele pela californiana Nancy Math, que se hospedou para uma temporada de 10 dias no icônico Hotel Nacional, em Havana. Residente em San Diego, ela levou 24 horas para chegar até a capital cubana. Ainda é dificílimo para cidadãos americanos obter de seu governo a liberação para voar até a Ilha. Após conseguir a licença para saídas em grupos, Nancy e seus amigos tiveram de voar até a Cidade do México e de lá pegar um avião para Havana. “Apesar de ser tão próximo, voamos a noite toda e mais um pouco. Isso aqui é encantador, mas acredito que ainda vai demorar para as coisas ficarem mais fáceis”, diz ela, que trabalha com turismo. “Decidi vir agora, antes que todos os americanos venham.”
No mesmo hotel, quase todas as noites, dançarinos repetem o refrão “Buenos dias, América…”, enquanto entoam o grand-finale de um show de ritmos cubanos e caribenhos, no cabaret do Hotel Nacional. O cinco estrelas cubano, com 456 apartamentos, inaugurado em 1930, pertence ao Estado e hospedou líderes e celebridades que passaram pela Ilha, com exceção do papa Francisco, que lá esteve em 2015. Acostumado a hospedar levas de canadenses e nórdicos, o hotel viu dobrar o número de americanos que costumava receber. “Tive de aumentar o valor da diária de US$ 120 para US$ 170 porque a procura estava muito grande”, diz o gerente geral Antonio Martinez Rodriguez. Tony, como é conhecido, trabalhou décadas no gabinete de segurança do governo do hoje aposentado Fidel Castro. “Há muito por fazer ainda, das obras de infraestrutura nos aeroportos à hotelaria.” Havia apenas 4 fingers no aeroporto internacional de Havana.

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REALIDADE
No alto, o taxista Rafael Leon, com seu Baleia 1956, joia de família que
garante seu sustento. A americana Nancy Math com a recepcionista de
hotel Jacqueline: ”Decidi vir agora, antes que todos os americanos venham”

Dar bom dia à América não é tão simples quanto no espetáculo musical cubano. Para muitos cubanos, soaria como mera rendição. O lema é ir devagar. “Os americanos não são muito confiáveis”, diz um recalcitrante ex-dirigente cubano. “As intenções não são tão nobres.”A real reaproximação dos Estados Unidos com a Ilha ainda depende de rodadas de negociação e de um Congresso com muitos republicanos radicalmente avessos à idéia. Mesmo que o apoio do presidente americano Barack Obama tenha mudado o curso da história, o fim do embargo econômico, o fechamento da base militar de Guantânamo e, em contrapartida, a instauração de eleições diretas e a democracia em Cuba devem levar tempo.

Ir à Havana ainda hoje é atravessar um portal no tempo de volta para os anos 1950. Não se sabe até quando. Os chevrolets antigos, que dominam o tráfego intenso na avenida do Capitólio, talvez estejam mais restaurados, com motores novos trocados e importados dos Estados Unidos, via México. Mas a nova Cuba, nesse ávido compasso de espera, ainda é a velha. Por mais que o período mais dramático da economia tenha passado – nos anos 1990, com o fim da União Soviética, quando o PIB do país despencou 34% -, os problemas econômicos ainda são enormes. Seja pelo embargo americano, seja pela própria economia cubana, regida pelas leis nacionais. Há 20 anos, Cuba vive com dupla moeda. Lá convivem os CUCs, que são os pesos convertidos equiparados em 1 para 1 com o euro, utilizados nas atividades de turismo, e o CUP, a moeda local. Para obter um CUC, que vale 0,87 dólar, os cubanos precisam de 24 CUPs. O governo anunciou que vai unificar as moedas, mas ainda não há prazo. Três décadas depois da crise provocada pelo fim da ajuda soviética,o s mercados estão menos desabastecidos, mas ainda é raro encontrar carne bovina e peixe. A exceção é o frango. “O grande problema de Cuba é a economia”, diz um oposicionista. O cenário é fruto exclusivo do embargo americano? Sim e não, apontam alguns cubanos. As consequências do embargo são duríssimas, mas medidas criadas décadas atrás por Fidel Castro também criaram deformações que refletem na economia. “Se um homem mata uma vaca, ele pega 20 anos de prisão. Se mata uma pessoa, pega 17 anos”, lembra um crítico do governo. A produção de carne de boi é exclusividade do Estado.

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ABSORVENTE ÍNTIMO, RARIDADE – Nos mercados, nota-se a presença italiana. Seja pela massa Barilla ou pela água mineral San Pelegrino. É proibido entrar com bolsas à tiracolo. Seguranças barram quem insistir. Carrinhos de compras abarrotados são incomuns. Absorvente íntimo, por exemplo, é um ítem de luxo. As mulheres ainda recorrem às antigas toalhinhas, do tempo das avós. “É muito raro encontrar”, agradeceu, gratíssima, a camareira Luiza, após ganhar de uma hóspede do Hotel Nacional quatro pacotes do absorvente Íntimus, trazidos do Brasil. Absorventes são raros, mas smartphones, nem tanto. A mesma camareira usa aplicativo de bate-papo e e-mails em seu celular, embora o acesso à internet seja um privilégio de poucos – menos de 4% dos domicílios estão conectados à rede.

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A expectativa de mudança no país é alta para um dos maiores músicos cubanos, o jazzista Chucho Valdés. “Penso que o bloqueio acabará antes de Obama deixar a presidência”, diz. Há também um sentimento de dúvida com a reaproximação americana. Para Frei Betto, “será o choque do consumismo com a auteridade”. O escritor Senel Paz, autor de “Morangos e Chocolate” vê um momento “interrogante”. “Haverá uma chegada americana impetuosa?”, questiona. “As pessoas querem uma vida melhor, com estabilidade, mas sem perder os valores sociais e espirituais.” Senel crê no fim do embargo. “O embargo não é mais útil. Não deu resultado”, diz. “Foi uma medida política para acabar com o regime socialista, mas que não só não acabou, como uniu o povo de Cuba.”

CARRO, JOIA DE FAMÍLIA – A união faz a força na manutenção da velha frota automotiva. Exemplares mais novos datam de 1959. Os veículos antigos, símbolo cubano, remontam a visão do que significa ter um carro. O motorista de taxi Rafael Leon é dono de um baleia Chevrolet 1956, conversível, que foi adquirido zero quilômetro na concessionária por seu avô, Massimo, e depois pertenceu ao pai, Adolfo. O carro é uma joia de família. É o que, na verdade, sustenta sua mulher e os três filhos. Rafael trabalha das 8h às 21h diariamente e fatura o equivalente a 200 dólares por mês. É alta a manutenção e a gasolina custa US$1,50 o litro. Sua mulher é programadora de voo e ganha US$ 40 por mês. “Graças a Deus, a abertura começou. Estamos cansados”, suspira. “Cuba tem coisas boas, como a educação e a medicina, mas será um alívio o fim do embargo.”

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INFRAESTRUTURA
Aeroporto José Martí, com 4 fingers, e mercados pouco abastecidos

MEU PRIMEIRO PASSAPORTE – Para o engenheiro mecânico Fernando Valera, 47 anos, a consequência mais animadora da abertura no governo de Raul Castro foi ter seu primeiro passaporte. Hoje, é mais fácil viajar para o exterior. “Tinha sede de conhecer culturas, de ver como gente da minha área trabalha”, diz. “De repente, não nos sentimos mais presos numa ilha e isso é valioso”. Valera fez a primeira viagem internacional para o Brasil. É assistente do pintor René Francisco, que vai expor em São Paulo, em abril. Para ele, os cubanos se sentem mais leves. Em Cuba, porém, ainda se fala de política com parcimônia. Críticas ao Estado não são feitas naturalmente. “Isso muda aos poucos”, diz uma empresária que vive entre Cuba e os EUA. “As pessoas já têm menos medo de falar.”

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A cineasta Rebeca Chavez, que dirigiu um documentário sobre o livro “Fidel e a Religião”, de Frei Betto, e registrou um encontro de ambos, resume: “Estou muito curiosa com o que irá acontecer”. Rebeca finalizou o argumento de seu novo filme, que trata da abertura. “Já tenho o título: ‘Aparências’”, diz. “Contará a história de duas casas vizinhas e idênticas, uma delas com a fachada reformada pelo dono e a outra, não”. No San Cristóbal, uma mesa de 10 lugares em torno de Frei Betto festejava o título de Doutor Honoris Causa concedido ao escritor e frade dominicano brasileiro pela Universidade de Havana. “Os reis da Espanha já jantaram aqui”, comentava, entre os presentes, o escritor Leonardo Padura, autor de Best-seller como “O Homem que amava os Cachorros” e “Hereges”. Mick Jagger, líder da banda Rolling Stones, já teria passado por lá também. As bandeirinhas de Cuba e Estados Unidos no broche dos garçons do restaurante, poéticas e apaziguadoras, deixam uma impressão: os cubanos gostam da ideia de ser (ou ter) americanos, sem abdicar de ser cubanos. No entanto, ao menos por ora, as bandeiras amigas são só um enfeite gentil. Na vida real, pode ser mais difícil.

“Sabemos que, depois de Obama, será mais difícil mudar”

Braço direito de Raul Castro, Homero Acosta, secretário do Conselho de Estado, fala sobre a transição com os EUA

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ISTOÉ – Como será a reaproximação com os EUA?
Homero Acosta –
As relações diplomáticas caminham e miram o fim do embargo. Altos funcionários cubanos e americanos se reúnem para negociar. Há grande interesse de setores econômicos dos EUA, que querem investir, mas não podem, porque o bloqueio não permite. Por outro lado, ainda há muita complexidade em Cuba. Os salários são baixos, há uma dualidade monetária e cambial. O processo de normalização das relações é maior que o restabelecimento delas. Para que tenhamos uma relação normal, temos de acabar com o bloqueio, que é uma prerrogativa do Congresso dos EUA. Além disso, é preciso que os americanos entreguem a Cuba a base naval de Guantánamo.

ISTOÉ – Obama deixa o governo em um ano. As negociações recuarão?
Acosta –
Obama não vai resolver tudo. Se o Partido Democrata perder as eleições, será um outro processo. Temos consciência de que poderá ficar mais difícil sem ele na presidência. Obama está disposto a interceder junto ao Congresso contra o bloqueio. Ele diz que a política americana, que objetivava destruir a revolução cubana, fracassou.

ISTOÉ – Qual foi o papel do Papa na reaproximação com os EUA
Acosta –
A visita pastoral do Papa veio incrementar a fé no povo cubano. O Papa é também um homem político. Antes do mundo inteirosaber, Francisco deu o ponto de partida, escreveu para Obama e Raul. Isso ajudou na reaproximação. Mandou duas cartas, através do cardeal cubano Jaime Ortega Alamino.

ISTOÉ – Quais foram os maiores danos do bloqueio?
Acosta –
Muitos. Cuba não pode utilizar o dólar americano. Cuba não pode vender para os Estados Unidos. Milhões de turistas norte-americanos não podem viajar diretamente a Cuba. Cuba não pode comprar nenhum produto dos EUA sem permissão. Cuba não pode comprar nenhum produto em outro lugar que tenha 10% de componentes americanos. Um avião da Embraer não pode ser vendido para Cuba pelo Brasil, por ter 10% de equipamento de fabricação dos Estados Unidos. Cuba não pode comprar de uma subsidiária dos Estados Unidos que tenha em outro país, por exemplo. A General Motors tem sociedade com o Brasil, não pode estar aqui. E se uma empresa faz negócio com Cuba, deixa de fazer negócios com Estados Unidos. Não é autorizada a compra de alimentos pelos Estados Unidos. Sao condições muito difíceis. Tem que comprar mercadorias na china. A preços mais altos pelos fretes. Quando aconteceu o bloqueio, todos os automóveis dependiam de maquinário americano. Você imagina – a geladeira, o seu fogão – você ter que mudar, do sistema americano para o russo? Para o francês?

ISTOÉ – Com a baixíssima estrutura salarial presente hoje em Cuba, como isso mudará com a abertura do país? A China, décadas atrás, passou por esse processo, mas como a economia cubana suporta isso?
Acosta –
Isso é um processo complexo para Cuba. Em primeiro lugar, a China se abriu ao capital estrangeiro e começou seu desenvolvimento de forma intensiva sem o bloqueio dos Estados Unidos. Cuba teve que fazer seu processo, primeiro com uma relação com a união soviética e outros países socialistas. Com o fim da união soviética, o PIB de Cuba despencou 35% de um ano para o outro. Isso não ocorreu em nenhum país do mundo. Não havia eletricidade. Na metade do dia, Cuba ficava inteiramente apagada. Não havia transporte porque não havia combustível. As pessoas andavam de bicicleta. Não havia alimentação. Era muito baixo o volume. Num mundo em que caíram todos os países socialistas, Cuba teria que cair por efeito dominó. Porque não poderíamos resistir. E os Estados Unidos naquele momento, aumentaram o bloqueio com as medidas punitivas, pensando em quebrar a conexão da revolução. Essa é a razão dos turistas americanos não podem vir sozinhos, por exemplo. Foi preciso enfrentar isso com um povo unido. Houve muita gente que não aguentou. Mas a imensa maioria do povo apoia a revolução. E mesmo nessas circunstâncias o País começou, pouco a pouco, a crescer. O turismo, por exemplo, não existia praticamente. Mas mercado e capital estrangeiro, incipientemente, começaram com negócios e o país começou, pouco a pouco, a crescer.

ISTOÉ – Mas e os salários? Um médico ganha hoje 80 dólares por mês…
Acosta –
Os salários em Cuba são baixos. O próprio presidente Raul reconhece. Mas em Cuba há um fenômeno que é quase desconhecido. Em Cuba, há dualidade monetária. E dualidade cambial. O dólar não podia circular, era penalizado. Agora vamos unificar. Mas é uma medida mais complicada. É um corte social que Cuba não quer fazer. Desamparar milhões de pessoas, como se faz em muitos países da América Latina? Estamos fazendo pouco a pouco. Temos que lembrar ainda que tudo é subsidiado. Não se paga escola, alimentação básica,aluguel,não paga plano de saúde. 90% das casas são próprias. Não se paga imposto por ter propriedade imobiliária.

ISTOÉ – Existe a possibilidade de eleições diretas em Cuba?
Acosta –
Não sei.

Fotos: Fernando Louza, Gisele Vitória, Cuban Council of State Photo Archive