Em uma tarde de agosto de 1966, o escritor colombiano Gabriel García Márquez e sua mulher, Mercedes, dirigiram-se a uma agência dos correios, em Buenos Aires, levando um pacote com 490 páginas datilografadas. Era a primeira tentativa de submeter a obra "Cem Anos de Solidão" à avaliação de uma editora. A taxa de envio do livro ficara em 80 pesos – eles tinham apenas 50. García Márquez fez o funcionário ir tirando as folhas de papel do embrulho até chegar a um valor compatível com o que eles possuíam. Mandaram metade do romance, voltaram para casa, penhoraram o aquecedor, o secador de cabelo e o liquidificador e retornaram ao posto do correio. Ao final, Mercedes disse ao marido: "Ei, Gabo, tudo o que nos falta agora é o livro fracassar." Essa passagem está na biografia "Gabriel García Márquez: Uma Vida" (Ediouro), que chega às livrarias em meados de novembro. Foi escrita pelo inglês Gerald Martin após uma exaustiva pesquisa de quase duas décadas. E, ironicamente, vem corroborar o que foi dito certa vez, em tom gozador, pelo próprio García Márquez, hoje com 82 anos: toda personalidade que se preze deveria ter uma biografia escrita por um autor britânico. Aí está.

A vida do autor colombiano confunde-se em alguns momentos com a história de sua obra-prima "Cem Anos de Solidão", recém lançada no Brasil em novíssima edição (Record). A extensa árvore genealógica da família, os muitos filhos ilegítimos e outros tantos órfãos ou criados por tios e avós estão lá presentes, como na saga da família na cidade fictícia de Macondo.

Assim como o temperamento autossuficiente, melancólico e solitário. "Sou escritor por causa da timidez. Minha verdadeira vocação é ser mágico, mas fico tão encabulado tentando fazer os truques que tive de me refugiar na solidão da literatura", escreveu aos 40 anos o criador do realismo fantástico, marco na literatura mundial, num autorretrato literário anterior ao sucesso mundial. A sua biografia contém 300 entrevistas feitas com familiares, amigos e personalidades públicas e detalha a ascensão política e intelectual de García Márquez, sua adesão ao movimento socialista e a leal amizade ao dirigente cubano Fidel Castro. Um dos episódios da vida do autor que alimentaram a imprensa envolve o escritor peruano Mario Vargas Llosa, que lhe deu um soco em público em 1976. "Isso é pelo que o senhor fez a Patricia", disse Llosa, após deixar-lhe roxo o olho direito – agressão que ficou famosa nos meios literários. A versão contada pelo biógrafo é de que o casamento de Vargas Llosas e Patricia estava numa fase difícil e García Márquez teria se aproximado da esposa do então amigo. Martin não apresenta uma explicação definitiva, mas aponta a traição e a inveja como prováveis motivos. E escreve: "Por trás do evidente sentimento de traição de Vargas Llosa, pode ter se ocultado uma ansiedade de que o pequeno colombiano, pouco sedutor, estivesse se provando melhor do que a encomenda. O próprio sucesso literário, extraordinário e bem merecido, e a fina estampa de belos traços de Mario não eram suficientes em si mesmos – talvez a única arma que lhe restara fora o soco poderoso."

Os dois escritores nunca mais se falaram depois dessa briga. Casado há mais de seis décadas com Mercedes, García Márquez é hoje um homem rico, tem sete casas em diversas cidades do mundo – Paris, Barcelona, Havana, Buenos Aires, Cidade do México e Bogotá – e cobra US$ 50 mil por uma entrevista de meia hora. Gosta de dizer que todos os indivíduos possuem três vidas: a pública, a privada e a secreta. O seu sucesso e a prosperidade pertencem à esfera pública, o seu casamento à privada e cabe a essa biografia revelar um pouco de seu lado mais secreto. E esse tem muito a ver com a solidão que ele traz consigo desde os tempos em que era garoto em Aracataca. Ou Macondo.

FIDEL E GABO: UMA LONGA AMIZADE

Na década de 1970, Gabriel García Márquez e Fidel Castro tinham aproximadamente a mesma idade, cerca de 50 anos, ambos eram hispânicos e anti-imperialistas. Ao se conheceram em Havana, o escritor colombiano, que já era uma celebridade, tornou-se seu fiel aliado e foi muitas vezes chamado de "lacaio" do ditador. Numa visita de Castro a Bogotá nos anos 1980, García Márquez foi intitulado o seu "guarda-costas-oficial". O biógrafo inglês Gerald Martin afirma nos capítulos finais do livro que García Márquez nunca se incomodou com essas críticas e provocações e que até hoje é um defensor entusiasmado do ex-dirigente cubano, a quem visita todos os anos em Havana.

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