Osamba é uma instituição nacional a ponto de Dorival Caymmi ter decretado: “Quem não gosta de samba bom sujeito não é”. Há aqueles que comemoram em 2016 o centenário de nascimento dessa paixão brasileira, mas se alguém desejar festejá-lo em 2017 não há problema porque até hoje não se sabe ao certo quando ele surgiu. Com o samba se repetiu o que se dera com outros fatos à época da recém-proclamada República: em meio à uma bateria de imprecisões e mitificações, muita lenda virou “verdade”, muita verdade virou “lenda”. O certo é que o samba não guarda uma data cravada de nascimento, e não há ritmo definido na primeira música nomeada com tal designação para se saber se ela é mesmo um samba. Maxixe? Talvez. Samba-tango? É difícil. Tango amaxixado? Pode ser. Vale lembrar que tão surpreendente quanto a própria Proclamação da República (“quartelada sem povo”, na análise de Aristides Lobo) era todo o seu entorno social no começo do século passado. Assim registraram Zuza Homem de Mello e Jairo Severiano em “A canção no tempo”: “Primeira composição classificada como samba a alcançar sucesso (…) tudo é discussão: a autoria, a afirmação de que foi o primeiro samba gravado, e até sua designação como samba (…)”. Anote-se que os autores dizem que foi a primeira composição com esse ritmo a “alcançar sucesso”, ou seja, outras existiram que não se tornaram populares – é o caso, por exemplo, de “Urubu malandro”, gravado em 1914 como samba (disco Phoenix, número 70589).

Era no Rio de Janeiro, numa ampla casa da rua Visconde de Itaúna, que malandro, trabalhador e batuqueiro se reuniam naquele despertar da República para jogar capoeira, cantar, compor e beber — e ninguém mais animada que a anfitriã, a baiana Tia Ciata. A moçada ia repetindo um refrão e em torno dele improvisavam-se letras, algumas desconexas (“o peru me disse/se o morcego visse/não fazer tolice”), encaixadas à força em trechos de composições sertanejas (gênero que migrara para o meio urbano). Dessa forma teria nascido a canção que Tia Ciata chamava de “Roceiro”: “O chefe da folia pelo telefone mandou me avisar/ que na Carioca tem uma roleta para se jogar (…)”. Um dos bambas da roda, Ernesto dos Santos, apelidado Donga, registrou a música na Biblioteca Nacional, sob o rótulo de samba e com o nome “Pelo telefone”, em novembro de 1916 (“A construção do samba”, Jorge Caldeira). Está aí um atestado de que os cem anos podem ser agora, em 2016.

Ocorre, porém, que em fevereiro de 1917 o cantor Bahiano colocou em disco letra e música de “Pelo telefone”. Aí sim passou a ser cantada por toda Rio de Janeiro, e isso fundamenta aqueles que querem a comemoração do centenário no ano que vem. É interessante notar que nessa gravação a letra fala “o chefe da folia pelo telefone mandou me avisar/que na Carioca tem uma roleta para se jogar”. Foi a partir do sucesso que se trocou “o chefe da folia” por “o chefe da polícia”, e parte da intelectualidade da esquerda ideologizou que o ritmo nascera denunciando a corrupção policial. Bobagem. O samba, em geral, no andamento do século, oscilou entre adular e criticar o establishment. O cantor e compositor Almirante desmitifica a questão em “No tempo de Noel Rosa”: não existia roleta no Largo da Carioca, quem a instalou foi o jornal “A Noite” numa campanha autopromocional. E, aparentemente, tudo estaria combinado com o delegado Aurelino Leal que, assim, aproveitou-se de seu despacho contra a jogatina nos morros e assegurou a sua presença na história do primeiro (primeiro?) samba (samba?) gravado no Brasil. Eu integro o grupo de boa gente do Caymmi e me orgulho de ter samba hereditário no sangue, independentemente da data de seu aniversário. E concordo com Noel em “Feitio de Oração”: “Quem suportar uma paixão/sentirá que o samba então/nasce do coração”.