Um grupo de diplomatas brasileiras decidiu romper o silencio que costuma rondar os casos de abuso moral e sexual no trabalho. As funcionárias reuniram mais de cem relatos de assédio e os encaminharam ao Secretário Geral do Itamaraty, Sérgio Danese. Entre as ameaças mais comuns estão cancelamento de promoções, remoção para postos considerados menos nobres, adiamento de férias, carga horária abusiva, sobretudo no exterior, desvio de função e xingamentos de todo tipo. Pelos corredores, contam as vítimas, o ditado que impera é “bode bom não berra”. Informado, Danese se disse sensibilizado. Uma das providências estudadas pelo Ministério das Relações Exteriores (MRE) seria a criação de uma ouvidoria exclusiva para os casos, vinculada ao Comitê de Gênero e Raça do Ministério, criado em 2014. Nos dias seguintes, entretanto, com o vazamento da informação, o clima no Itamaraty era de tensão. Fontes ouvidas sob a condição de anonimato afirmaram que alguns superiores chegaram a intimidar funcionárias com a ameaça de processos por calúnia e difamação, caso as denúncias viessem à tona.

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ISTOÉ teve acesso a mais de quinze depoimentos de mulheres assediadas moralmente e sexualmente, encaminhados pelas vítimas ao Sindicato Nacional dos Servidores do Ministério das Relações Exteriores (Sinditamaraty). A maioria apresentou denúncias formais à Corregedoria do Itamaraty, subordinada à secretaria-geral, mas nunca obteve resposta. Na avaliação da presidente do sindicato, Sandra Nepomuceno, “a impunidade ajuda a perpetuar a cultura de assédios”, especialmente em um ambiente onde, para se progredir na carreira, é preciso ter o apoio de outros colegas. Uma das denúncias é de uma oficial de chancelaria, há 22 anos concursada pelo órgão. Atualmente, ela atua numa zona de conflito no Oriente Médio. Ela diz se sentir “mais insegura dentro do ambiente de trabalho do que fora dele”. Chefe da contabilidade local, a funcionária conta que um de seus chefes tentou convencê-la a cometer uma irregularidade e, ao se negar, ela passou a ser perseguida. Hoje, o caso está na Corregedoria. Outro processo que aguarda um parecer do corregedor é o de uma funcionária administrativa lotada na América Latina. Há 28 anos no órgão, ela conta que nunca havia tido problemas com seus chefes, até uma recente troca de comando. “Eu tinha 23 dias de férias vencidos e precisava visitar minha filha no Brasil, que estava com um problema de saúde”, diz a servidora. Segundo ela, ao assumir o cargo a nova chefia lhe negou o direito e, questionada, disse aos berros que só a liberaria “caso a filha tivesse sido estuprada ou corresse risco de vida.”

O fato de ser mulher aparece como um agravante nas práticas de assédio. Diversas funcionárias afirmam ter sofrido ameaças após recusarem investidas sexuais de superiores. Lotada na África, uma oficial de chancelaria conta que era frequentemente impedida de buscar a filha no colégio, enquanto outros colegas eram liberados. Segundo ela, o nível de assédio no Itamaraty é incomparável com o de outros órgãos públicos. “Quando você trabalha no exterior, não tem horário. O plantão é interminável e não remunerado. Então, você entra e não sabe a hora que vai sair. Daí, essa decisão se torna um arbítrio de determinadas pessoas que preferem que algumas saiam e outras não.” Na tentativa de sistematizar as denúncias e combater o assédio, um grupo de aproximadamente 20 funcionárias se uniu para criar um grupo de apoio chamado “Amigos no mundo”. Nos próximos meses, o coletivo reunirá depoimentos e pretende traçar um perfil da prática no Itamaraty. Até o fechamento desta reportagem, o MRE não respondeu aos questionamentos apresentados.

Montagem sobre foto Roberto Castro