Leia aqui trecho do primeiro capítulo da biografia "Chagal"

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Jackie Wullschlager teve acesso a cartas e documentos inéditos

O pintor russo naturalizado francês Marc Chagall (1887-1985) gostava de escrever. Deixou uma farta correspondência, uma autobiografia precoce, redigida aos 36 anos, e uma grande quantidade de anotações pessoais. Era a forma que ele usava para refletir sobre a sua arte e sua condição de artista nômade que passou pela Alemanha, França e EUA. Em um desses escritos esparsos, feito quando vivia em Nova York nos anos 1940 fugindo do nazismo, ele escreveu: “Todo pintor nasce em algum lugar. Embora mais tarde ele possa reagir às influências de outros ambientes, uma certa essência – um certo ‘aroma’ de seu local de nascimento – adere à sua obra.” É com essa reflexão que a crítica de arte inglesa Jackie Wullschlager abre o livro “Chagal”, uma portentosa biografia de quase 800 páginas cujo tema recorrente é justamente esse: um grande artista não consegue se furtar às suas origens, pelo menos aqueles pintores que viveram antes da incessante troca de informações dos dias atuais. Natural do vilarejo de Vitebski, na atual Belarus, Chagall cresceu no seio de uma família judia do ramo hassídico, conhecido pelo forte apego às tradições. E isso na virada do século XX, quando seu país seria palco de profundas transformações.

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Para ele vale o ditado: “Pode-se tirar um garoto do shtetl (aldeia, em íidiche), mas não se tira o shtetl do garoto.” É possível apreciar, sem ter em mente essa conjunção de fatores, o tom circense de suas telas, com seus jumentos azuis, seus galos vermelhos e suas mulheres verdes que flutuam no ar como balões presos à mão de uma criança. Mas perde-se, com certeza, aquele “aroma” a que o artista se referiu. Por uma dessas felizes coincidências, “Chagall” está sendo lançado com a abertura da mostra “O Mundo Mágico de Marc Chagall – Gravuras”, no Museu de Arte de São Paulo no sábado 23. Trata-se de uma parte da exposição que passou por Belo Horizonte e pelo Rio de Janeiro no segundo semestre do ano passado e foi vista por cerca de 80 mil pessoas. Ela aporta no Masp sem a sua melhor parte, o segmento de pinturas. Mas nem por isso perde em importância, já que reúne 178 obras das grandes séries de gravuras do artista cuja produção gráfica é longamente comentada no livro. Percebe-se claramente como a autora se deixou impregnar pelos “aromas” de Vitebsk. Ela pesquisou durante oito anos e teve acesso a pacotes de cartas, documentos inéditos e fotos de família, cedidos pela historiadora de arte Meret Meyer Graber, neta de Chagall.

Chagall viveu as grandes mudanças do século XX e criou um mundo próprio ligado às suas origens

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E o mais importante: conseguiu passar tardes inteiras com Virginia Haggard-Leirins, segunda mulher do biografado, com a qual viveu sete anos depois da morte de Bella, o seu grande amor. Jackie se interessou pelo seu personagem dada a sua trajetória, que sintetiza as grandes mudanças ocorridas no século XX. Nascido nos estertores do czarismo, que isolou os judeus no chamado Território do Assentamento, região da qual Vitebsk fazia parte, Chagall viveu os anos da agitação revolucionária e chegou a ser um comissário das artes. Mas logo desentendeu-se com as lideranças, que não viam relação entre Karl Marx, Lênin e uma vaca verde. Ao exilar-se, passou por Berlim e fixou residência em Paris na efervescência das vanguardas. Com a sua pintura tachada de “degenerada” pelos nazistas, foi obrigado a se exilar nos EUA com a chegada das tropas de Hitler à França. Mas também em Nova York, recém-coroada nova capital cultural, foi contemporâneo de outra ebulição artística. Um cidadão do mundo, com certeza. Chagall, contudo, se manteve íntegro em relação às influências do cubismo, do expressionismo, do fauvismo e do abstracionismo. Sentia-se desenraizado. No capítulo intitulado “Judeu Peregrino”, Jackie reproduz uma carta do artista para o amigo russo Pavel Ettinger,  em que ele reclama da “falta de um chão”: “Vão se passando os anos e a gente se sente cada vez mais uma ‘árvore’ que precisa do solo que lhe é próprio, da chuva e do ar que são seus.” A autora não economiza detalhes na descrição desse ambiente que produziu um artista tão singular. “Os ideais hassídicos de harmonia entre o homem e a natureza permeiam a obra de Chagall em todas as décadas. Ele se identificava especialmente com as vacas e para ele o peixe tinha ligações simbólicas com seu pai, trabalhador no armazém de arenques”, escreve ela, ao examinar o seu apego aos animais. O curioso é que, ao pôr os pés novamente na Rússia, em 1973, depois de tantos anos como persona non grata, Chagall não quis ir a Vitebsk, a sua “triste e jovial” aldeia. “Com 86 anos, certas lembranças não devem ser perturbadas”, disse, ciente de que elas estariam para sempre vívidas em cores e pinceladas.

UM MESTRE TAMBÉM NAS GRAVURAS

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RELIGIÃO
“Abraão e os Três Anjos”, gravura da série “A Bíblia”

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MITOLOGIA
“Ao Meio-Dia, o Verão” integra a série “Dafne e Cloé”
 

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FÁBULAS
A obra “O Lobo e a Cegonha” ilustra uma das histórias de La Fontaine
 


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