Aprendemos cedo na escola que Carlota Joaquina bateu os sapatos, ao embarcar na nau que a levaria de volta à Europa, livrando-se assim de qualquer possível vestígio de terra brasileira. Aprendemos, achamos graça e passamos a vida repetindo o gesto da tresloucada princesa. Lembro-me de uma tia que era casada com um tenente-coronel, que tinha sido enviado para os Estados Unidos para fazer um estágio. Como essa história deu-se no auge da ditadura militar, eu tremo só de pensar no conteúdo daquele estágio. Enfim, minha tia parou em Lima, em seu trajeto para Maryland – na época o Peru também gemia esmagado sob as botas dos militares – e voltou afirmando que as portas do aeroporto de Lima abriam-se sozinhas. Aquilo nos deixava a todos boquiabertos e ela arrematava com um tempo perfeito.
– Você se aproxima da saída e as portas se abrem, meu filho! Uma coisa impressionante! – ela mexia a cabeça e o cabelo aprisionado pelo laquê inclinavase em bloco.

Depois, bradava. – A civilização chegou ao Peru, meu querido. Chegou ao Peru, mas não chegou aqui. A grande maioria de nós foi criada ouvindo discursos como o de minha tia. Um travo de rancor alinhavando os parágrafos, um suspiro e uma mágoa de cortar o coração. Vovô, que amava o Brasil, não discutia. Levantava-se da mesa, colocava o chapéu de palha e desaparecia, enquanto nós imaginávamos um Peru que certamente nunca existiu. Viajar, para as Carlotas de então, significava sair do Brasil. O turismo interno, eu desconfio, lhes causava certa repulsa.

Eu costumo dizer que agradeço ao teatro pela oportunidade de ter conhecido minha terra de cabo a rabo, porque a ladainha repetida, desde a mais tenra infância, acaba nos jogando no mesmo movimento. Na verdade, a crônica tinha sido esboçada para falar de Londres, onde fui passar o fim de ano (fui também a Berlim e a Oslo, mas delas falo mais tarde). Há uma coisa que me encanta na alma inglesa, que é o amor pelo teatro. Uma amiga minha me disse, certa vez, que gostava de ir ao teatro em Londres, só para ler os adjetivos que os produtores copiavam das críticas e colocavam nas marquises. – É tanto elogio que a gente até se espanta! – ela me disse! É wonderful! É don’t miss it! A gente acaba se sentindo melhor com tanta generosidade.

Ela tem toda razão. Fui assistir aos espetáculos da última temporada e pus-me a catar adjetivos como quem cata flores num campo de primavera. Alguns eram merecidos, outros nem tanto, mas havia por toda parte uma vontade de que a crise não maltratasse demais aquilo que para eles é fundamental em sua formação como povo. O teatro, tenha ele a cara que tiver, goste você ou não, ainda é o espelho de uma civilização. É nele que vamos ver refletidas as nossas esperanças e a qualidade dos nossos sonhos. Fui muito ao teatro.

No Palace, o gerente do teatro, um brasileiro que fincou suas raízes por lá, nos recebeu com muito carinho e gentilmente nos apresentou ao edifício. Mais tarde, quando saímos para a noite fria, cantarolando algumas canções, os bolsos cheios de adjetivos, que mais tarde arrumei no fundo da mala, constatei, com um sorriso nostálgico, que soprou fumaça gelada no ar da avenida Shaftesbury, que nenhuma das portas abria-se sozinha. Nenhuma, titia! Nenhuma.

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