O desenhista conta como mantém seu império de criação vivo e inovador, apesar do policiamento radical de setores da sociedade que acompanham a infância

Mauricio de Sousa completou este mês 80 anos com sorriso de uma criança de 8. Chefe de um império de 150 contratos de licenciamento de mais de 3 mil produtos, que chegam 90 países, o pai de Mônica, personagem baixinha e dentuça conhecida por brasileiros de quatro gerações é reconhecido hoje como o maior formador de leitores do Brasil.

 

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CONCILIADOR
‘Acho que a lição mais importante dos meus quadrinhos é o valor da conciliação’

 

Dono de 86% das vendas de histórias em quadrinhos no País, o criador da Turma da Mônica, conta, em entrevista à ISTOÉ que para envelhecer com energia e criatividade para inovar na área em que se mantem líder há mais de meio século teve de aprender a não levar problemas para o dia seguinte.

 

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"O ‘Pequeno Príncipe’, de Saint-Exupéry, traz a mesma mensagem
da ‘Turma da Mônica’. Me envolvi profundamente nesse projeto"

 

No meio das comemorações de aniversário, o desenhista prepara para lançar em breve uma das mais sofisticadas investidas da sua carreira, a série impressa “Turma da Mônica Adulta”, continuação da “Turma da Mônica Jovem”, maior sucesso de vendas da Mauricio de Sousa Produções desde que seu fundador começou a publicar suas tirinhas nos anos 1970. 

 

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"Capitães de Areia’, de Jorge Amado, é uma grande influência.
O que aquelas crianças da Bahia querem é o mesmo que
os meus personagens: carinho e felicidade"

 

ISTOÉ

 O que mudou dos anos 1970, quando o sr. começou a publicar as revistas da Turma da Mônica, para hoje, momento em que só as histórias em quadrinhos da Maurício de Sousa Produções chegam a pelo menos 30 países?

Mauricio de Sousa

 Além da tecnologia, o número de artistas envolvidos na criação. No começo eu fazia tudo: elaborava, saía vender para as redações, checava a contabilidade. Não existia profissional da área no mercado. Tive de formar artistas, literalmente pegava na mão dos desenhistas. De um lado eu ensinava. Do outro, chorava como uma mãe que deixa o filho na escola pela primeira vez. Fazendo história em quadrinhos hoje somos uma família de 60. No total (os produtos vão de alimentos à aplicativos de celular) somos 200. 

ISTOÉ

 O sr. consegue ainda hoje acompanhar os processos da sua empresa do começo ao fim?

Mauricio de Sousa

 Não mais. Marina de Sousa, minha filha, assumiu a avaliação de roteiros, que era a última parte do processo que eu acompanhava do começo ao fim. Hoje é bem tranquilo selecionar profissionais que conhecem os nossos personagens, o espírito das histórias, porque a maioria dos jovens que bate aqui na nossa porta aprendeu a ler com os nossos gibis.

ISTOÉ

 Os personagens estão sofrendo atualizações para acompanhar as mudanças na sociedade. Recentemente houve um grande barulho em torno de Caio, um jovem homossexual que participa de um suposto triângulo amoroso em uma revista sobre a personagem Tina.

Mauricio de Sousa

 Foi um barulho grande de fato, principalmente dos leitores de mais idade. Fui muito atacado. Mas se tratou de uma interpretação errada. O Caio não é gay. Acho que ainda não chegou o momento de entrar no tema da homossexualidade. A sociedade ainda não está pronta pra isso.

ISTOÉ

 Mas o sr. entende que é preciso primeiro a sociedade aceitar um tema para depois ele ser colocado no gibi? Não existem momentos em que a arte e o entretenimento precisam se colocar na frente para ajudar a sociedade a amadurecer?

Mauricio de Sousa

 Existem esses momentos e muitas vezes assumimos bandeiras no que diz respeito à aceitação e ao fim de preconceitos. Mas evito entrar em brigas e não gosto de polêmicas. Ainda não é o momento para encamparmos essa causa.

ISTOÉ

 Recentemente, a página da sua empresa no Instagram exibiu uma imagem de uma criança reivindicando direito à publicidade infantil, com uma reação muito forte de setores da sociedade que apóiam o fim ou a redução da publicidade para esse público.

Mauricio de Sousa

 Não fomos nós que postamos. Uma criança que acompanha as nossas redes fez o cartaz e publicou. 

 
ISTOÉ

 Mas vocês compartilharam com os seus seguidores e, depois dos ataques, retiram do ar.

Mauricio de Sousa

 Sim. Achei uma beleza uma menina falando o que muita criança talvez gostaria de dizer e reproduzi. Mas logo em seguida veio uma carga pesada conta a gente. O Instituto  Alana (ONG de proteção à infância) se voltou com carga toda contra mim. Não gosto dessas querelas públicas e quis preservar a criança que se posicionou. Por isso retiramos a imagem.

ISTOÉ

 O sr. concorda com a rejeição pela Câmara dos Deputados da proposta que proíbe veiculação de publicidade infantil nas tevês aberta e fechada  a favor da liberação da publicidade infantil?

Mauricio de Sousa

 Acho que a publicidade infantil bem cuidada, respeitosa, com restrições como as que o próprio Instituto Alana propõe podem inclusive ajudar as crianças e as famílias a melhorar a relação com os produtos e o consumo.  Em relação à nutricão, que é ponto central nesse debate, estamos estudando em profundidade a obesidade infantil. Achamos que pelas histórias em quadrinhos podemos ajudar bastante. Gostaríamos inclusive do nos juntar ao Instututo Alana em vez  de brigar com eles.

ISTOÉ

 Como seria essa ajuda?

Mauricio de Sousa

 Nós falamos hoje não só com as crianças e os jovens. Mas também com os pais e os cuidadores. A nutrição da criança não se deve apenas à sua escolha. Sabemos que somos as revistas mais lidas também por quem cuida das crianças, pois o gibi é levado para casa e é uma leitura palatável. Então demos às narrativas elementos que, sem perder o tom de humor da história, ensinam a comer melhor, como a pirâmide alimentar que divulgamos bastante no ano passado, quando a (personagem) Magali fez 50 anos. Fazemos cartilhas e outras materiais institucionais, mas o que acho que mais funciona são as histórias. Aprende-se melhor sem saber que se está aprendendo.

 
ISTOÉ

 Essa preocupação com a educação e a saúde infantis também se reflete na escolha de parceiros e clientes?

Mauricio de Sousa

 Sem dúvida. Perdi a conta de empresas que chegaram aqui com propostas que eram excelentes negócios do ponto de vista financeiro, mas feriam um ou outro princípio de proteção à infância e então recusamos.

ISTOÉ

 Como o senhor lida com o policiamento do que se considera hoje politicamente correto?

Mauricio de Sousa

 Quando comecei, meus personagens soltavam balão. Já havia um consenso na sociedade de que soltar balão era perigoso. Mas se tratava de um tempo em que se podia contar com o bom senso. O personagem não precisava sempre fazer tudo exemplarmente. O Chico Bento, por exemplo, levava tiro de sal quando roubava goiaba do Nho Lau. Eu sou de um tempo em que “Pica-Pau”, “Tom & Jerry” e outros grandes sucessos que nos divertiam envolviam tiros com armas, bombas, machadadas. Isso não fez de mim um facínora. Eu olhava aquilo, achava graça, e a graça tinha relação com saber que aquilo não era algo que se fizesse, que se pudesse imaginar fazer. A criança também forma uma grade de critérios para lidar com a ficção. Há uma reconstrução constante da moral. Mas precisamos aprender a viver com a moral do nosso tempo: o Cebolinha, por exemplo, antes pintava os xingamentos contra a Mônica no muro. Hoje, ele escreve no papel e cola o cartaz no muro.

ISTOÉ

 Isso não deixa as histórias para crianças todas um pouco parecidas, pasteurizadas?

Mauricio de Sousa

 Às vezes sim. Mas depende de quem roteiriza e dirige encontrar essa medida. Não estou enjaulado no politicamente correto. Se fosse assim, a Mônica não jogaria seu coelho contra o Cebolinha, pois é uma agressão. O Cebolinha não faria mais suas gozações, pois é bullying, nem o Cascão fugiria do banho pois é um mau exemplo de higiene. Ou seja, eu mataria os personagens. Às vezes as pessoas até acham que passo do ponto Mas prefiro isso a transformar tudo numa geléiazinha sem gosto.

ISTOÉ

 Além dos desenhos animados da infância, o que mais o influenciou para criar a “Turma da Mônica”?

Mauricio de Sousa

 Os clássicos russos foram muito importantes na minha formação. Mas também a obra do Gabriel García Marques. “Capitães de Areia”, do Jorge Amado é uma grande influência pra mim. Aquelas crianças na Bahia estão vivendo e buscando o mesmo que os meus personagens: carinho e felicidade. Existem algumas verdades que são universais. Crianças da Ásia, da Oceania e da África têm desejos e anseios semelhantes. Essa é, aliás, uma orientação que dou pra minha equipe, pois hoje não fazemos mais histórias só para o Brasil.

 
ISTOÉ

 É esse interesse pelas histórias universais que o levou a adaptar o “Pequeno Príncipe”, de Antoine Saint-Exupéry?

Mauricio de Sousa

 Sim. E inclusive me envolvi profundamente nesse projeto pelo teor da mensagem que encerra e a influência que exerce na vida das pessoas há tanto tempo. Estamos cada vez mais buscando as histórias universais. Há poucos dias estive com uma comitiva de japoneses que veio para tratarmos de licenciamento. Em vez de revistas da “Turma da Mônica”, dei de presente para os colegas alguns dos exemplares de “O Pequeno Príncipe que tinha no escritório. Porque a nossa mensagem é a mesma. O Saint-Exupéry que me perdoe, mas eu também sou Saint-Exupéry.

ISTOÉ

 E qual é essa mensagem?

Mauricio de Sousa

 É a busca da concórdia. A decisão de não se levar conflitos adiante. O que os meus personagens ensinam de mais importante é que toda confusão que pode e deve ser resolvida, nem que seja na hora que fechamos os olhos na cama. No dia seguinte, tudo tem outra cor e quase sempre passa. É o que eu faço há trinta anos e há trinta anos nada me enfurece, nem me tira o sono ou me provoca dor de cabeça ou estômago. Eu gostaria que os brasileiros, em vez de reagir com tanta ferocidade como temos visto nas redes, voltassem para suas casas à noite e se permitissem entregar a raiva das discordâncias ao sono reparador. 

ISTOÉ

 O sr. pensa em fazer o “Turma da Mônica Adulta”?

Mauricio de Sousa

 Claro! Já está no forno. Vai ser uma série, como as da TV. A “turma” vai começar a coleção com 23, 24 anos, e irá amadurendo em tempo real, tendo como pano de fundo dos acontecimentos da realidade. Vamos trabalhar com psicólogos e jornalistas nessa empreitada. Quem sabe ainda faremos a “Turma da Mônica na Terceira Idade…”