Com o sonho de um terceiro mandato, a presidente da Argentina, Cristina Kirchner, passou os últimos anos despreocupada em criar um sucessor. Enterrado o projeto “Cristina eterna”, a presidente se viu obrigada a aceitar um candidato de fora de seu círculo de confiança. Apesar das ressalvas, ela apostava na vitória tranquila de Daniel Scioli nas eleições presidenciais realizadas no domingo 25. Scioli ficou na frente de seu maior adversário por uma diferença inesperada de apenas dois pontos percentuais: 36,9% contra 34,3% de Mauricio Macri. O peronista dissidente Sergio Massa, ex-chefe de gabinete da presidente, ficou em terceiro, com 21,3%. A disputa passará por um inédito segundo turno em 22 de novembro. Até lá, a corrente política de Cristina dentro do peronismo, o kirchnerismo, será colocada à prova. Por enquanto, os ventos não são muito favoráveis a ela. Na primeira pesquisa divulgada após o primeiro turno, Macri apareceu em primeiro lugar, com 45,6% das intenções de voto, quatro pontos a mais que Scioli. Até a quinta-feira 29, Massa não havia declarado voto em nenhum dos candidatos remanescentes, mas afirmou: “Não quero que Scioli ganhe.”

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SEM SUCESSOR
Cristina Kirchner alimentou por anos o projeto de um terceiro
mandato. Sem conseguir reformar a Constituição, ela agora
vê seu futuro político ameaçado

A rejeição ao modelo implementado pelo casal Kirchner ficou evidente em duas das maiores províncias do país. No maior revés, os kirchneristas perderam sua fortaleza na província de Buenos Aires. Foi lá que Aníbal Fernández, o controverso chefe de gabinete de Cristina, entregou a vitória para uma pupila de Macri, Maria Eugenia Vidal. Na segunda-feira 26, Fernández justificou-se: “Não imaginávamos o impacto que poderia ter a denúncia do Canal 13 e de Jorge Lanata.” Ele se referia às acusações, apresentadas com estardalhaço pelo jornalista Lanata, que o vinculavam ao narcotráfico.

Em Córdoba, segunda província mais importante economicamente e em representação política, Scioli foi ainda pior. Ficou em terceiro, atrás de Macri e Massa. “O kirchnerismo chegou a um ponto crucial”, disse à ISTOÉ Laurence Allen, analista de América Latina da consultoria IHS, de Londres. “Se Scioli ganhar, ele estará numa forte posição para desenvolver seu próprio estilo. No longo prazo, poderia ser melhor para os kirchneristas se Macri vencesse, porque eles teriam a oportunidade de voltar renovados em 2019.” Nesse cenário, Patricio Giusto, diretor da consultoria Diagnóstico Político, de Buenos Aires, vê o oposto. “Massa está muito bem posicionado para disputar a nova liderança do peronismo”, escreveu em relatório. “Uma derrota de Scioli implicaria numa derrota total do kirchnerismo e numa reconfiguração de poder em que seriam levantadas sérias dúvidas sobre o futuro político de Cristina.”

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Segundo Allen, da IHS, independentemente do vencedor, o próximo governo argentino será mais moderado do que os anos Kirchner na Casa Rosada, marcados pela intensa polarização entre o casal e seus inimigos públicos, como o Grupo Clarín e o líder sindical Hugo Moyano. Agora ambos os candidatos mostram-se mais amigáveis ao mercado e aos investidores estrangeiros. Mas, para Pablo Nemiña, pesquisador da Faculdade Latinoamericana de Ciências Sociais, de Buenos Aires, a eleição de Macri poderia significar um radicalismo à direita. “Ele está disposto a implementar de imediato reformas pró-mercado, como a eliminação das restrições cambiais, e isso pode ter graves consequências”, afirma.

A ruína da dinastia Kirchner expõe um racha dentro do peronismo. O grupo de intelectuais Carta Aberta pediu para que Scioli se mantenha à esquerda e reveja sua equipe ministerial. Falando como eleito durante a campanha do primeiro turno, o candidato governista chegou a anunciar os nomes de seu futuro gabinete ministerial. Nenhum viria da Cámpora, grupo liderado por Máximo Kirchner, filho de Cristina e Néstor. “Ainda que a Cámpora fique de fora, sua força na Câmara poderá fazer com que Scioli tenha que negociar com eles”, diz Nemiña. No legislativo, os candidatos da Cámpora tiveram bom desempenho e terão, no total, 24 deputados nacionais – entre eles, o atual ministro da Economia, Axel Kicillof – e três senadores. Mesmo assim, a base governista, como um todo, encolheu 20%. Por isso, Scioli não hesita em distanciar-se cada vez mais de Cristina. “Serei mais Scioli do que nunca”, declarou.

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Fotos: JUAN MABROMATA/AFP PHOTO; EITAN ABRAMOVICH/AFP PHOTO