Fundo Musical
Íntimo de Hitler, Putzi (de costas) era chamado tarde da noite para tocar ao piano. Na foto, eles estão numa recepção na casa de Goebells

Foi durante a formação do Partido Nacional Socialista na década de 1920, sob a histriônica liderança de Adolf Hitler, que o talentoso pianista alemão Ernst "Putzi" Hanfstaengl desembarcou em seu país após mais de uma década nos EUA. Mais precisamente, na cidade de Munique, onde travaria o seu primeiro contato com Hitler ao assistir a um discurso proferido por ele em uma cervejaria local. Foi amor à primeira vista. Considerou o líder nazista o perfeito modelo de político que a Alemanha necessitava para voltar a crescer e se recuperar da destruição provocada pela Primeira Guerra Mundial. E Putzi, como era chamado, teria muito a contribuir na sua trágica ascensão ao poder. É o que revela, com riqueza de detalhes, a biografia "O Pianista de Hitler" (José Olympio), do pesquisador britânico Peter Conradi. O livro ilumina a trajetória desse milionário alemão que apoiou o regime nazista com entusiasmo e depois, amedrontado pelos rumos que o movimento tomou e pelo risco a sua própria vida, fugiu para os EUA e se tornou um prisioneiro-colaborador do governo de Franklin Roosevelt.

Conradi teve acesso a arquivos secretos americanos desse período, recém-liberados, que incluem diversos dossiês escritos por Putzi sobre a vida e o temperamento do ditador alemão e a convivência de ambos. O biógrafo, ao mesmo tempo que descreve a personalidade titubeante e aparvalhada do pianista e amigo de Hitler, nos fornece um retrato risível do futuro líder nazista em seus anos de formação. Fica-se sabendo, por exemplo, que Hitler jamais havia visto uma alcachofra até ser convidado a um requintado jantar de uma aristocrática família alemã. Não se intimidou em revelar seu estranhamento diante da iguaria: "Senhora, tem de me dizer como comer esta coisa. Nunca a tinha visto antes", disse calmamente à sua anfitriã. A frase teria sido reproduzida diretamente dos dossiês redigidos por Putzi que continham uma outra passagem lembrada pelo pianista. Servido de um cobiçado vinho tinto, Hitler acrescentou à taça, sem nenhum constrangimento, duas colheres de sopa de açúcar. A incursão nas altas rodas da sociedade germânica foi, por sinal, uma das contribuições de Putzi ao partido. Em Munique, ele herdou a fortuna e o prestígio do avô e do pai, ambos alemães e bem-sucedidos comerciantes de arte (na época, possuíam uma galeria localizada na Quinta Avenida, em Nova York).

FÃS DE WAGNER
Hitler prestigia Winifred em Bayreuth

A AMANTE DO FÜHRER

Casada com Siegfried, filho do compositor alemão Richard Wagner, Winifred foi uma amiga íntima e grande apoiadora de Adolf Hitler. Também foram amantes e em 1933 circulou o rumor de que teriam se casado – o que não se confirmou. Ela enviou alimentos ao líder nazista quando ele permaneceu preso na década de 1920, o auxiliou na redação de sua autobiografia, "Mein Kampf", e intermediou a cessão dos direitos para a publicação do livro na Inglaterra. Após a morte do marido em 1930 – que era assumidamente homossexual -, ela passou a coordenar o Festival de Bayreuth, dedicado à obra de Wagner, e recebia Hitler na Haus Wahnfried, suntuosa residência do compositor. A mansão tornou-se um refúgio de Hitler, que em retribuição a isentou de impostos.

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VIRA-CASACA
Ameaçado na Alemanha, Putzi (acima) apoia os aliados

Uma curiosa contribuição de um entusiasmado Putzi teria sido o tradicional cumprimento nazista. Ele argumenta em suas memórias, transcritas no livro, que o gesto seguido do comando "Sieg Heil", que significa "aclamar a vitória", em alemão, foi uma sugestão sua adotada por Hitler em seus comícios. Ele "se inspirou" na coreografia dos chefes de torcida de futebol americano, função desempenhada por Putzi na Universidade de Harvard, nos EUA. Outra versão credita a origem do gesto e do comando ao então ministro da Propaganda do Terceiro Reich, Joseph Goebells. Além da educação formal concluída na conceituada Universidade de Harvard, Putzi traz de sua experiência americana um círculo de amigos influentes que incluía a família do futuro presidente Franklin Roosevelt. Fortuna, influência e talento ao piano – Putzi colocou todas essas suas credenciais a serviço de Hitler. Financiou a publicação da autobiografia do führer, "Mein Kampf", e de um jornal para o partido, e ainda assumiu o posto de compositor e pianista oficial do ditador. "Eu devo ter tocado ‘Tristão e Isolda’ centenas de vezes. E nunca era suficiente. Ele sentia-se bem fisicamente ao ouvi-la e ria com prazer." Também compôs marchas que são parte da trilha sonora de filmes da cineasta Leni Riefenstahl e foram executadas em momentos importantes da trajetória de Hitler ao poder, como no comício de Nuremberg, em 1934. Entre os compositores proibidos de ser executados em sua presença estavam Johann Sebastian Bach, Georg Handel, Joseph Haydn, Wolfgang Mozart, Ludwig von Beethoven e Johannes Brahms.

"É absurdo você ser judia. Seu crânio tem uma forma ariana perfeita. Consulte-se no instituto antropológico"
Putzi, para uma mulher judia

Hitler impressionou-se com as suas espirituosas interpretações de Richard Wagner e Franz Lizst. Na fase mais animada da amizade, Putzi abriu as portas de sua casa a Hitler. O seu primeiro filho, Egon, teve o führer como padrinho, e a sua esposa, Helene, era a paixão recôndita do nazista – demonstrada desastradamente algumas vezes em arroubos sempre relevados pelo marido. Nos dossiês de Putzi, Hitler é apresentado como um homem perturbado sexualmente, que teve alguns flertes homossexuais, provavelmente não consumados, segundo o confidente. Ele costumava ir munido de um chicote aos comícios e o utilizava de uma forma passional que sempre "intrigou" Putzi, que via naquilo conotações sexuais. Os desentendimentos entre ele e Hitler começariam com os primeiros violentos atentados promovidos pela SS contra opositores de dentro do próprio partido. E culminariam na invasão da Polônia em 1937, que um tolo Ernst Putzi, até o último momento, não acreditou que aconteceria. Ele aproveitou uma ocasião em que Joseph Goebells, Hermann Göring e Hitler estavam assistindo a uma apresentação da Filarmônica de Berlim para cruzar a fronteira em direção à Suíça.

TRILHA NAZISTA
O filme "Triunfo da Vontade", de Leni riefenstahl (à dir.), traz duas músicas de Putzi: "marcha Juvenil" e "Grande Alemão"

Putzi tornou-se um prisioneiro nazista na Inglaterra, onde passou algum tempo na detenção dedicando-se à leitura da "Bíblia", simultaneamente, em inglês, grego, latim, francês, alemão e holandês – e comparando a qualidade das traduções. Quando terminou isso, começou a ler o "Corão". Até ser finalmente transferido para os EUA com o objetivo de integrar o plano secreto de Franklin Roosevelt para destruir o Terceiro Reich. Putzi não escondia seus sentimentos antissemitas. Numa visita aos EUA, ele disse a uma jovem judia que encontrou em uma festa: "É absurdo você ser judia. Seu crânio tem uma forma ariana perfeita. Consulte-se no instituto antropológico." Ele morreu em 1975, aos 88 anos, em Munique, e para muitos foi apenas um nazista que se arrependeu para salvar a pele, e teve sorte de ser influente num país aliado. Na década de 1970, a Universidade de Harvard voltou a exigir retratações de Putzi, que passou o resto de seus dias dando explicações sobre o porquê de ter acreditado em Hitler. Como legado, ele parece ter deixado algumas composições próprias sem caráter militar – além disso, um de seus netos, Eyon, é hoje pianista em uma orquestra alemã.


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