Nas planilhas militares do Pentágono, o roteiro para ser encenado no teatro de operações do Afeganistão prometia sucesso. No papel, a linearidade nas ações determinaria um desfecho de vitória rápida. Primeiro, os mísseis de cruzeiro lançados de navios e submarinos americanos demoliriam as defesas aéreas do país e dariam céu de brigadeiro para as aeronaves completarem o serviço. No segundo ato, os alvos seriam as trincheiras, túneis e buracos onde estavam enfurnados tropas e armamentos do Taleban e al-Qaeda. Essas novas descargas de bombas teriam o poder de desentocar os inimigos, que bateriam em fuga desnorteada. Em seu rastro viriam os comandos especiais ianques: cães de guerra com ordens para caçar, capturar ou matar o radical saudita Osama Bin Laden e seu Estado-Maior, e, de quebra, acabar com o regime do Taleban. Os coadjuvantes nesta história seriam as forças de oposição reunidas na Aliança do Norte. A eles caberia consolidar as conquistas de cidades, campos e montanhas, estabelecendo um novo governo afegão. Mas, depois de um mês em cartaz, a superprodução do Departamento de Estado ameaçava virar drama, com passagens cômicas. O problema é que os atores não seguiram o script americano. A crítica mundial passou a vaiar a mise-en-scène.

O fracasso público obrigou o presidente George W. Bush, o responsável pela produção, a ir à tevê para fazer propaganda. Numa vídeoconferência destinada à reunião de líderes europeus em Varsóvia, Bush apelou. Na terça-feira 6, o presidente comparou a al-Qaeda aos fascistas e alertou para um suposto perigo de ataque nuclear, com o fim da civilização, caso os terroristas consigam obter algum tipo de arma atômica. O alarmismo deu resultado: além da Turquia que já havia prometido o envio de comandos de elite para auxiliar na guerra contra o Taleban, também Itália, Alemanha, Canadá, Austrália e até o Japão – este pela primeira vez desde a Segunda Guerra – ofereceram contingentes para reforçar o elenco. Enquanto Bush falava diretamente da Casa Branca, a poucos quilômetros dali, no Pentágono, o roteiro militar era reescrito para se adaptar à realidade do teatro do absurdo que é o Afeganistão.

Os novos planos já levam em conta a recusa das forças do Taleban em cumprir seu papel de presas fáceis. O próprio secretário da Defesa americano, Donald Romsfeld, reconheceu em público que o inimigo é mais resistente e determinado do que se supunha. Além de sua disposição para a luta, os talebans também contam com a incompetência generalizada das tropas de oposição e dos estrategistas dos bombardeios americanos. “Quando nossos homens viram os aviões americanos despejando bombas no front, foi uma alegria total. Mesmo a população civil daquelas regiões comemorou o fato de o Taleban estar agora recebendo o castigo pelos bombardeios que eles mesmos promoveram contra as vilas e cidades. Mas a alegria durou pouco. As bombas erraram o alvo e o Taleban imediatamente abriu sua artilharia contra nossas posições”, disse a ISTOÉ Ashraf Na Deen, porta-voz da Aliança do Norte.

Fontes do Departamento de Estado americano pintaram a ISTOÉ um quadro complicado. “Essa Aliança do Norte é composta por grupos variados, com interesses próprios e diferentes, e algumas dessas tropas têm objetivos que não interessam aos EUA. Alguns líderes da oposição são piores do que os talebans. É a tal história, com amigos como estes, quem precisa de inimigos? Em termos de estratégia, é melhor deixar esses grupos se desgastarem agora para que não possam ter força num futuro governo de coalizão. Por isso, o suporte aéreo e o apoio material americano para alguns contingentes da Aliança não se concretizaram”, diz a fonte militar. Estariam nessa explicação as razões pela penúria e surra que o comandante Rashid Dostum vem sendo submetido nos subúrbios de Cabul. Dostum personifica à perfeição a imagem do aliado indesejável. Ele foi o chefe da polícia secreta do governo marionete instalado pelos soviéticos no Afeganistão. Seus métodos e ética fazem o Taleban parecer um convento de carmelitas.

Na semana passada, Dostum implorava ajuda: suas tropas estavam cercadas pelo Taleban e já não tinham sequer balas para se defender. “Nós estamos com fome, tem muita gente lutando descalça, perdemos até nossas fardas. Precisamos de apoio aéreo urgente, pois estamos sem munição”, choramingava o chamado “Carrasco de Cabul”. Não se sabe se foi atendido. Outros senhores da guerra têm experimentado a mesma sorte em outras frentes de batalha. “Há uma clara disposição de podar a árvore que ocupará o palácio de governo em Cabul em breve”, diz a fonte de ISTOÉ.

Nem tudo nos campos de batalha, porém, é fruto de oportunismo tático dos pensadores do Pentágono. As bombas que deveriam ajudar os aliados desejados pelos americanos não tiveram trajetórias maquiavélicas. Simplesmente erraram os alvos. Para corrigir a pontaria, o comando americano enviou grupos de elite às linhas de frente. Sua missão é apontar posições inimigas através de um sistema de raio laser. Além disso, estão tentando dar um jeito na incompetência de seus aliados afegãos fornecendo assistência militar. Esse reforço começou a dar resultados positivos quase imediatamente. Na terça-feira 6, por exemplo, forças da oposição ganharam bom terreno nos subúrbios de Mazar-i-Sharif, a importante cidade cuja posição estratégica determina o fluxo de abastecimento de Cabul. Dois dias depois, o porta-voz Ashraf disse a ISTOÉ que o assalto a Mazer-i-Sharif havia começado. O que teria possibilitado esse assalto foram os bombardeios mais precisos sobre os talebans.

Assine nossa newsletter:

Inscreva-se nas nossas newsletters e receba as principais notícias do dia em seu e-mail

Só assim as tropas da Aliança do Norte se animaram. Dias antes, eles confessavam a um repórter do diário The New York Times que não estavam treinando por causa da chuva. “Não gostamos de lutar na chuva”, disse um soldado rebelde. O mesmo repórter conta que viu um tanque sair de uma área e se dirigir a outra, num terreno mais elevado. Perguntou se aquela seria uma manobra para combater o inimigo. “Não, estou só tirando o tanque do meio da lama e estacionando num lugar mais seco”, respondeu o comandante do blindado.

 

Referência londrina

Luiza Villaméa

Uma comparação feita pelo presidente Fernando Henrique Cardoso em Washington ecoou na região da fronteira entre a Argentina, o Brasil e o Paraguai como um bálsamo. “A fronteira tríplice deve ser mais segura que Londres ou qualquer outra importante cidade européia”, disse FHC na quinta-feira 8, depois de um encontro com o presidente George W. Bush na Casa Branca. “Essa história de que a região é santuário de terroristas começou em relatórios inconsistentes de agentes americanos e virou tema da rede de tevê CNN”, lembra Fouad Fakih, do movimento Paz sem Fronteiras, criado depois dos atentados nos EUA. Foi justamente a CNN quem insistiu com FHC sobre a existência de bases terroristas na área, citando documentos de embaixadas americanas. “Eu ficaria encantado se vocês pudessem me enviar esses documentos”, respondeu, com uma ponta de ironia, o presidente.

Como abriga cerca de 12 mil moradores de origem árabe, a tríplice fronteira se tornou alvo de suspeitas desde o começo dos anos 90, na esteira de dois sangrentos atentados a bomba em Buenos Aires. Dessa vez, embora genéricas, as acusações estão sendo feitas de forma tão insistente que FHC levou o general Alberto Cardoso, do Gabinete de Segurança Institucional, para discutir o tema com seus colegas americanos. Com Bush, no entanto, o maior interesse de FHC era relembrar uma antiga reivindicação: que o Brasil e outros países em desenvolvimento participem de fóruns de decisão internacional, como o Conselho de Segurança das Nações Unidas.


Siga a IstoÉ no Google News e receba alertas sobre as principais notícias