Certa vez perguntaram ao ministro Mario Henrique Simonsen se ele não estaria trabalhando pouco. A comparação era com o colega Delfim Netto, que chegava ao gabinete às 5h e saía às 20h. Simonsen trabalhava das 9h às 18h. A resposta dada de bate-pronto foi uma de suas muitas pérolas: “Você está partindo de um raciocínio errado. Você acha que eu só estou trabalhando na hora em que minha bunda está sentada? Está totalmente errado. Eu trabalho é com a cabeça.” A explicação desconcertante é uma das histórias deliciosas do livro Mario – uma coletânea de 28 depoimentos e cinco artigos reunidos pelos jornalistas Luiz Cesar Faro e Coriolano Gatto. O lançamento será no dia 27.

A partir da memória afetiva de 35 amigos, as 238 páginas do livro são uma bem-sucedida tentativa de falar de Mario, simplesmente. Dotado de um monumental senso de humor, foi uma das personalidades mais instigantes da vida pública brasileira, apesar do seu contato estreito com a nada instigante ditadura militar. Foi presidente do Movimento Brasileiro de Alfabetização (Mobral) e ministro do governo Ernesto Geisel. Tantos cargos fizeram dele alvo fácil para a esquerda. Era tratado pejorativamente de “o conselheiro do Citibank” – alusão ao fato de se encontrar com frequência com o chairman do Citigroup, John Reed, devido à sua parceria no Banco Bozano, Simonsen. “Mesmo sendo um prodígio, Mario era muito modesto”, elogia a economista Maria da Conceição Tavares, adversária ideológica em todos os assuntos de macroeconomia.

As divergências entre os dois se aprofundaram depois de 1964. Foi quando Simonsen incluiu num plano econômico uma fórmula de arrocho salarial. “Tivemos uma discussão veemente.” Apesar de estarem em campos opostos, Conceição nunca deixou de reconhecer as virtudes do amigo. “Eu nunca vi Delfim ter nenhum ataque de consciência. Delfim é cínico mesmo. Mas, no caso de Mario, não. Mario era um ser moral.”

As recordações contadas por quem conviveu com ele são a melhor tradução para suas nuances de personalidade. Menino prodígio, despertou para a música ainda de calças curtas. Foi uma herança deixada pelo pai. Aos quatro anos, apaixonou-se por Mozart. A musicalidade precoce foi variando até alcançar o mundo da ópera. Aos 11 anos, foi arrebatado pela ópera Carmem, depois Rigoletto, La Bohème, Aída e Otello. Chegou até a exibir seu vozeirão para o tenor Plácido Domingo. Cantava, de cor, 80 óperas e chegou a presidir a Orquestra Sinfônica Brasileira (OSB). “Mario costumava relacionar situações com temas ou frases da ópera”, recorda Luiz Cyrillo, fundador da Construtura Gomes de Almeida Fernandes, que acompanhava Simonsen nos grandes festivais de ópera. Depois de assistirem a Tristão e Isolda numa dessas viagens, os casais Simonsen e Cyrillo foram passear em um jardim em Bayreuth, cidade alemã famosa pelos festivais de ópera. “No meio do caminho havia uma árvore enorme. Assim que a viu, ele se ajoelhou e começou a cantar para Iluska a ária que Tristão cantava se declarando para Isolda.”

Iluska, segunda namorada e mulher da vida toda, acompanhava o marido sempre. “Eu falava que Iluska jogava xadrez melhor do que ele e o Mario ficava danado da vida”, recorda Salim Schahim, presidente do Grupo Schahim. Do casamento com Iluska nasceram Sérgio, Maria Cristina e Ricardo. Tudo em Simonsen era superlativo. Num jantar ele pediu ao garçom um enorme prato de salmão. “Quando estiver acabando, você me traz outro”, lembra seu pupilo na Fundação Getúlio Vargas (FGV, Rio) Daniel Dantas, do Opportunity. As refeições de Simonsen eram pantagruélicas. De tanto frequentar o Antiquarius, um dos melhores restaurantes do Rio, virou nome de prato: o Arroz de Frutos do Mar à Mario Simonsen.

Depois da comida e da ópera, o futebol foi outra paixão. Vascaíno doente, nunca abandonou as peladas. Nem no trabalh . “Era uma pelada animada. Uma vez estávamos jogando, passei a bola para o Mario, ele cabeceou, e nisso a porta se abriu. Era o Lucas Lopes (assessor do Ministério da Fazenda de Juscelino Kubitschek). Foi aquele silêncio”, lembra Luiz Fernando da Silva Pinto, que trabalhou com Simonsen na Consultec.

Outra paixão era inventar palavras e idiomas. O mais popular foi o prussiano do sul – um aglomerado de sons germânicos sem significado que costumava usar nos elevadores. Não é possível falar de Mario, ou de Simonsen, sem mencionar também os inseparáveis cigarros. Ganhou o apelido de dragão. Além dos inúmeros cafezinhos: a dosagem diária de cafeína chegava a 20 xícaras. Com os íntimos, era bonachão e divertido. “Costumávamos nos encontrar em Teresópolis, onde tínhamos casa. O papo entrava pela madrugada. Ele se animava e subia numa casa de árvore, uma espécie de casinha do Tarzan, e dava uma canja de barítono”, recorda Henrique Flanzer, ex-secretário geral do Ministério do Planejamento do governo Médici.

Com os outros, era simpático, mas absolutamente formal.

Com seu estilo desajeitado de vestir, Simonsen atingiu na vida um status raro: ficou acima do bem e do mal. “Ele só cuidava da sua intelectualidade”, lembra o sócio Júlio Bozano. Sua passagem pela vida foi bombástica. Morreu no Carnaval de 1997, antes de completar 62 anos. Nem quando descobriu o câncer perdeu o humor. “Tenho 60% de minha capacidade respiratória, o que não é bom, mas também não é péssimo.” Esse foi Mario, que ficou famoso como Simonsen.