Quando se sobrevoa a Amazônia, os olhos se perdem nos diferentes tons de verde que tingem as copas das árvores. Na paisagem entrecortada por rios sinuosos, vez ou outra salta aos olhos o colorido dos ipês-roxos e amarelos. Ao se aproximar da região do desmatamento, que avança em forma de arco do Sudeste em direção ao Norte do País, o avião descortina uma colcha de retalhos esburacada por clareiras de mata destruída. Nos Estados do Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, onde fica o grosso das fazendas de criação de gado e o cultivo de soja, é raro observar uma área extensa de floresta em pé.

É no momento do pouso, porém, que se tem noção de como esse desequilíbrio se manifesta. O primeiro sinal está na ausência de sombras. Onde não há árvores, a temperatura pode chegar a 60 oC. Mas a situação fica insuportável mesmo quando surgem do nada verdadeiras nuvens de pium, minúsculo inseto que voa em grupo e cobre a vítima de picadas doloridas que incham, demoram para cicatrizar e deixam marcas duradouras na pele. Na Floresta Amazônica são comuns histórias de trabalhadores que desmaiam diante do calor que amolece as pernas e do pium que ataca qualquer parte do corpo descoberta. A sabedoria popular reza: se há pium em excesso, há desmatamento à vista.

Na área ambiental, onde consensos são quase raridade, os cientistas que integram o Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas, ligado à Organização das Nações Unidas (ONU), têm pelo menos uma certeza: quando em crescimento, a floresta absorve mais gás carbônico do que elimina, funcionando como esponja natural para sugar o gás despejado pelo escapamento dos carros, pelas usinas geradoras de energia elétrica e pelas queimadas. Reunidos na semana passada em Marrakech, no Marrocos, os representantes desse painel acertaram os ponteiros para pôr em prática as diretrizes do Protocolo de Kyoto, que obriga países industrializados a reduzir em média 5% a emissão de gases de efeito estufa entre 2008 e 2012. As empresas e o governo das nações industrializadas serão obrigados a tomar atitudes drásticas. Ao cidadão comum, cabem sacrifícios como andar menos de carro, gastar menos eletricidade e reciclar o lixo. Uma das saídas é apostar na própria natureza. Um país que investisse na recuperação das matas destruídas, em tese, poderia emitir tanto CO2 quanto o verde conseguir absorver. Durante o processo químico da fotossíntese, as plantas sugam o CO2 e jogam de volta o oxigênio na atmosfera.

Responsável pela emissão de 12% do gás carbônico do mundo, a indústria automobilística é uma das vilãs na guerra contra o aquecimento do planeta. “Nossa prioridade é reduzir a emissão de gases estufa investindo em combustíveis alternativos e participando de projeto de reflorestamento”, explica Jean-Martin Folz, presidente mundial do grupo PSA Peugeot Citroën, sexto fabricante mundial. Desde setembro de 1998, a montadora francesa participa de uma iniciativa de reflorestamento em Cotriguaçu, no noroeste de Mato Grosso. O projeto executado pela ONF Brasil, filial da organização não-governamental francesa Office National des Forêts (Agência Nacional de Florestas), conduz experiências para medir a quantidade de carbono absorvido pela atmosfera. Erguida em uma área desmatada pelo antigo proprietário e hoje pertencente à ONF, a Fazenda São Nicolau tem dez mil hectares (uma vez e meia a cidade de Paris), onde já foram plantadas quase 800 mil mudas.

A montadora desembolsou 65 milhões de francos (cerca de US$ 9 milhões) no projeto. O objetivo é usar a floresta para capturar dois milhões de toneladas de carbono. “Do ponto de vista econômico, ele não é viável. Deve ser visto como um ato de fé”, explica Olivier Weill-Hébert, diretor da ONF. A iniciativa da Peugeot é um mecenato científico e ecológico. “Não temos a intenção de ter retorno financeiro”, diz o presidente Folz. Ao visitar o campo de reflorestamento na Amazônia, o próprio Folz se disse surpreso: “Eu mesmo não tinha idéia do que significava um poço para sequestro de carbono”, conta.

Para receber outra bolada de US$ 6,5 milhões, a montadora e a ONG ambientalista inscreveram o projeto de absorção de carbono no programa Fundo Global para o Meio Ambiente (GEF), co-financiado pelo Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma). O contrato obrigou a montadora a estudar e promover a diversidade de animais e plantas e a implantar um programa de desenvolvimento sustentável durante sete anos. Na prática, significa empregar até 100 pessoas da comunidade local nas épocas de plantio, tratamento e cuidados com a terra. Nos dois anos e meio de programa, já foram distribuídas 20 mil mudas a 20 pequenos proprietários da região. No total, plantaram-se 30 espécies, entre elas cajá, caju, cerejeira, cedro-rosa, mogno, peroba e urucum. “A reconstituição completa da floresta exigiria o plantio de 250 espécies”, explica Weill-Hébert, da ONF.

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“Precisamos aproveitar os recursos florestais para manter a população na terra, e isso não se faz sem ter gado, plantio de frutas e madeira para vender”, disserta o agrônomo Luis Maekawa, que supervisiona o viveiro onde se produzem as sementes e as mudas que serão plantadas na fazenda São Nicolau.

Para acompanhar os animais e estudar as árvores que mais se adaptam ao replantio, a Peugeot e a ONG franco-brasileira fizeram um convênio com a Faculdade de Zoologia da Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT). Raul Vieira, um biólogo que sabe pelos anos de sol na testa que a bota não protege contra picada de sucuri, diz que um dos indicadores de uma floresta saudável é a variedade de espécies animais que ela atrai. Todos os dias, Vieira calça a bota até o joelho, com porta-punhal na lateral, e sai à cata de animais com o facão na cintura, para o caso de uma emergência. Cachorro-do-mato, anta e capivara ele já encontrou nas entranhas mato-grossenses.

Mecenas – Em outubro, o presidente mundial da montadora francesa visitou pela primeira vez o projeto amazônico. Embrenhou-se em passeios pela floresta, em expedições durante o dia e a noite. Numa delas, Folz escorregou em um tronco que servia de ponte sobre um pequeno córrego. Um pesquisador murmurou: “Ai, meu Deus! Esse homem não pode cair, senão ele pega uma pneumonia e pára de financiar nosso trabalho!”

Projetos como esse não produzem resultados imediatos. Uma árvore frutífera pode levar de dois a sete anos para atingir o tamanho adulto. Para chegar aos 70 metros de altura, como é comum na mata amazônica, são necessárias algumas décadas. Se seguir à risca os mandamentos de Caio Mecenas, o rico diplomata romano protetor das letras, ciências e artes, a Peugeot deve usar seu “mecenato ecológico” apenas como arma de marketing. Ainda assim, experiências como essa servem de baliza para outras iniciativas de recuperação do verde. Essa é a grande aposta para salvar a Terra de literalmente pegar fogo, já que as previsões dão conta de que o planeta estará 5,8° C mais quente em 2100.


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