Os Papa já estiveram entre as famílias com maior projeção na sociedade brasileira. José Papa Júnior, conhecido como Zizinho, comandou a Federação de Comércio de São Paulo de 1969 a 1984, candidatou-se a senador pelo PDS e foi cotado para vice-presidente de Fernando Collor. Márcio, um de seus irmãos mais novos, presidiu o Banespa no começo dos anos 80 e, até maio deste ano, encabeçava o conselho deliberativo do Esporte Clube Palmeiras. Descendentes de italianos, José Papa e seus filhos Amedeu, Zizinho, Valdner e Márcio eram donos do banco Lavra, da Mirafiori e outras concessionárias de veículos, de imóveis, fazendas e uma distribuidora de ferro e aço, a Cibraço.

De dois anos para cá, a maioria das empresas foi vendida. Em abril, o Banco Central decretou a liquidação extrajudicial no Lavra, após identificar um rombo de R$ 30 milhões no patrimônio. O grupo ruiu, mas a reputação da família ficou de pé. Sete meses antes da intervenção do BC, os Papa reconheceram que o Lavra estava quebrado, mas que a culpa era do banco americano Comerica, que teria descumprido acordo para a compra da instituição. Comprometeram-se a abrir mão até dos bens pessoais para pagar os credores.

Um punhado de ex-clientes do Lavra está agora escrevendo um roteiro, digamos assim, off-Broadway. Na saga alternativa, os Papa se transformam em vilões. São acusados de lançar títulos podres no mercado internacional e de rechear contas na Suíça com dinheiro de caixa 2 – proveniente de operações bancárias, de venda de imóveis, de pagamento de ágio de automóveis, e, inclusive, do futebol brasileiro. “A lavagem de dinheiro era o feijão-com-arroz do grupo”, acusa o falido empresário Fábio Abdala Esper David. Ele diz que foi “obrigado” a fazer pagamentos por fora. Não só faz a afirmação como coleciona documentos a respeito de tais transações.

Conta em Genebra – David conhece os Papa há 35 anos. Por meio da RPS Informática, David fez negócios com os irmãos Papa, de tomada de empréstimos até a sociedade em empreendimentos imobiliários. A RPS faliu em 1996 e, desde então, os dois lados vêm trocando farpas. David responsabiliza os Papa por sua desgraça. Carrega um sem-número de processos nas costas, foi preso em 1995 pela então Delegacia de Defesa do Consumidor (Decon), devido a atrasos na entrega de encomendas. O filho e ex-sócio acusa-o por tudo de errado que aconteceu, as duas filhas saíram de casa. Atualmente, diz, ganha a vida vendendo computadores.

Quando soube por Isto É que David era um dos protagonistas das acusações sobre operações fraudulentas, Márcio Papa definiu-o como “estelionatário” e não quis saber de conversa. Tanto ele quanto Valdner disseram na reportagem que só falam à Justiça. Zizinho foi mais cordial. Afastou-se do banco há três anos, em meio às brigas da família – que se intensificaram depois da morte do primogênito, Amedeu, em junho de 1999. Zizinho não poupa críticas à David, que chama de “picareta”, porque demorou anos para colocar a boca no trombone.

David também denunciou ao BC e à Justiça sonegação fiscal ocorrida em um acordo para pagamento, em conta corrente no Exterior, pela compra de meio andar de um edifício comercial que seria construído no início dos anos 90 na avenida Luís Carlos Berrini, uma das mais valorizadas de São Paulo. “Isso é uma fantasia dele”, defende-se Zizinho, responsável pela área imobiliária do grupo. No entanto, em carta de 13 de novembro de 1991, Angelo Matteucci, então alto executivo do Lavra, pede a David para transferir os US$ 81.325 referentes à compra do imóvel para o MOL 2690. Procurado por IstoÉ, Matteucci não respondeu às ligações. Conforme David revela em outros documentos, MOL é um código utilizado para designar um número de conta corrente na filial em Genebra do Credit Agricole Indosuez. O próprio David tinha uma conta ali, de número MOL 2492.

 

O único dos que se dizem lesados a mostrar a cara, David figura como denunciante no inquérito policial número 19996181002953-1, que tramita na 7ª Vara Criminal Federal de São Paulo desde maio de 1999 – ou seja, antes mesmo de o Lavra entrar em liquidação.

Alan Rodrigues
“Lavar dinheiro era o feijão-com-arroz do Lavra”, diz David, instruído por Matteucci a depositar na Suíça

Até o momento restrita aos bastidores, trava-se outra batalha que envolve os mesmos Lavra e Indosuez. Investidores em títulos lançados pelos Papa no mercado internacional estão revoltados porque os papéis viraram pó. “Foi uma operação temerária”, diz o advogado Nelcy Nazzari, do escritório Carluci & Sartori, que representa os interesses de alguns desses aplicadores no Brasil.

Por trás da fachada – Pouco mais de um ano antes de o Banco Central decretar a liquidação do banco, o Lavra lançou US$ 5 milhões no mercado europeu. Sua controladora, a Lavra Participações, emitiu outros US$ 5 milhões. Na fachada, uma operação de colocação de notas promissórias, intermediada por um banco internacional, o ABN Amro, que comprou o Banco Real em 1998. O objetivo oficialmente declarado: captar dinheiro em dólares e repassar as linhas de crédito a empresas exportadoras.

Conforme informações obtidas por Nazzari, a compradora foi uma só: uma empresa offshore sediada em Lugano, na Suíça, chamada Transalp. A Transalp fracionou os títulos e revendeu-os a cerca de 50 investidores. Eles foram orientados a depositar tais papéis em contas no Indosuez de Genebra e também a assinar procuração à onipresente Transalp para administrar seus investimentos. Segundo declararam diretores do Indosuez a Nazzari, a Transalp é dos irmãos Papa. Se isso for verdadeiro, os Papa teriam vendido títulos a eles próprios, transação vedada pela legislação bancária brasileira e internacional. Valdner diz que, de fato, a Transalp comprou as notas promissórias.

Diante da indagação “A empresa é de propriedade da sua família?”, Valdner se irritou e aconselhou a reportagem a buscar informações no BC. O mesmo sugere Márcio, que nega serem eles os donos da Transalp. O liquidante do Lavra, Nelson José de Oliveira, diz não saber de nada. Pede que se fale com o BC, que, ao que consta, até hoje não entregou os documentos solicitados em 22 de outubro de 1999 no inquérito 19996181002953-1 e não respondeu a IstoÉ até o fechamento desta edição.

Para reforçar os indícios de que há uma relação próxima da Transalp com os negócios dos Papa, David entregou à reportagem diversas cartas que recebeu da Transalp em 1990, uma delas com cópias para um tal de Dr. Ângelo. Matteucci? David garante que sim. “A empresa era usada para manejar o dinheiro deles lá fora”, afirma. E vai além: “Alguns jogadores do Palmeiras tinham aplicações na Transalp, entre 1993 e 1997, na época do técnico Luxemburgo.”

Quem fazia todas as operações de câmbio do Lavra, segundo David, era Edmundo Abissanra. Procurado no seu atual escritório, na E.A Turismo e Câmbio, Abissanra disse que nunca trabalhou no banco, embora tenha feito vários negócios com os Papa – entre eles a compra de uma linha telefônica que, ironicamente, foi tomada pelo banco da empresa de David no processo de falência. Outra coincidência: a E. A. Turismo e Câmbio fica quase do lado do Lavra, na região da avenida Paulista. Mais uma: Abissanra foi, há algum tempo, juiz de futebol.

A Suça é brasileira – A reportagem tentou entrar em contato com o Indosuez. No Brasil, a informação é de que não são feitos negócios com clientes no País, pois funciona aqui apenas uma equipe de analistas do mercado de capitais. Mas investidores lesados estiveram reunidos com funcionários do Indosuez na sede do banco, na avenida Faria Lima. Ao ligar para Genebra, qual não é a surpresa quando do outro lado da linha a recepção vem num descontraído e brasileiríssimo “alô”. Pulando de um ramal para outro, sem que ninguém se disponha a esclarecer nadica de nada, mapeia-se um departamento inteiro na filial suíça cujo motor é movido a português.

Em 28 de março de 2000, duas semanas antes da intervenção do BC, o Indosuez zerou o valor dos títulos do Lavra e da Lavra Participações nas contas correntes dos investidores. “De um dia para outro, eles paparam todas as nossas economias”, diz um economista paulista prejudicado, que só aceitou falar a IstoÉ se preservado o anonimato. Ele diz ter sido seduzido por uma aplicação que renderia 10% ao ano. Antes, já investia no Indosuez, via Lavra, em títulos com rentabilidade de 3% ao ano. Perdeu US$ 200 mil na brincadeira.

O teor do contrato entre o banco ABN Amro, ou melhor, sua divisão Corporate Finance & Mercado de Capitais e os irmãos Márcio e Valdner revela um labirinto jurídico, segundo Nazzari. Os Papa excluem o ABN, também agente pagador, de qualquer responsabilidade. Procurado, o ABN não retornou as ligações. O advogado Nazzari procura verificar se a operação, às vésperas da liquidação do banco, foi premeditada, ou seja, se os Papa entregaram títulos já podres desde o início da transação. Em troca, teriam arrumado uma forma legal de internar dinheiro no Brasil. O próximo embate se dará na Justiça, aqui ou no Exterior.