Médico infectologista afirma que está preocupado com os rumos do País na prevenção, no diagnóstico e no tratamento da doença

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CRÍTICA
"Hoje o preconceito é muito menor, mas ainda existe. Conheço cirurgiões
e dentistas que se recusam a atender pacientes com HIV"

 

O infectologista Artur Timerman acompanha desde a década de 1980 as histórias de pacientes infectados pelo vírus HIV. O médico, que viu de perto a tragédia causada nestes primeiros anos pela epidemia de Aids, se diz preocupado com os rumos do Brasil no diagnóstico e na prevenção da doença. Segundo ele, o País está falhando em todos os aspectos. “O Brasil está na contramão do mundo. O programa foi ótimo no início, mas está ficando para trás”, diz. “Não temos os melhores medicamentos e o discurso de que todos estão sendo tratados é falso.”

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"Vivi a liberdade dos anos 70 e 80. Hoje ninguém vai fazer o que fazíamos
porque, como disse Cazuza, o nosso prazer virou risco de vida"

 

Para o especialista, o grande desafio dos próximos anos será lidar com a despreocupação dos jovens em relação à doença. “Eles estão desavisados sobre as conseqüências do HIV, estão bebendo mais e tendo relações sexuais sem se proteger.” Com aproximadamente 1,5 mil pacientes tratados, Timerman, que lançou recentemente o livro “Histórias da Aids”, conta que os médicos tiveram que descobrir no dia a dia como lidar com os efeitos do vírus. Mas muita coisa mudou. Antes, ele andava com um bloco de atestados de óbitos na maleta, tamanho o número de pacientes que perdia. Trinta e cinco anos após o surgimento da epidemia, os prognósticos para a cura são otimistas. Ele acredita que nos próximos cinco anos já exista uma medicação consistente para impedir totalmente a replicação do HIV dentro do corpo. 

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"A vacina não é a melhor perspectiva para erradicação do HIV. Agora é
preciso implementar o tratamento e usar os remédios mais seguros"

 

ISTOÉ

 Como o senhor definiria o atual estágio do Programa Nacional de Aids no País?

 
Artur Timerman

 Ele tem duas deficiências: a carência em termos de educação e a falta de tratamento para todos os infectados. O Brasil está chegando tarde nisso. Aqui não temos os melhores medicamentos porque o governo alega que eles são caros. Mas é uma questão de se negociar com as empresas. E precisamos discutir o financiamento pelos convênios. 

 
ISTOÉ

 O acesso a medicamentos gratuitos é restrito a alguns portadores. O discurso de remédios para todos é falso?

 
Artur Timerman

 Estamos vivendo um momento em que as autoridades inauguram placas dizendo que vão tratar todo mundo. Esse é um discurso falso. O último boletim do Ministério da Saúde diz que o Brasil tem 300 mil pessoas que estão vivendo com o HIV e não sabem. E mais 250 mil pessoas que estão com o diagnóstico do HIV e não estão sendo tratadas. Mas ninguém faz nada para mudar esse panorama. Vejo apenas restrições para a adoção de novos medicamentos mais eficazes e seguros. 

 
ISTOÉ

 Houve um abandono do cuidado com a doença pelas nações pioneiras em tratamentos, como o Brasil?

 
Artur Timerman

 O País está na contramão do mundo. O programa foi ótimo, mas está ficando para trás. Hoje o Brasil está defasado no combate à Aids. Não prevenimos, não fazemos o diagnóstico e não tratamos direito. E esses são os fundamentos do Programa Nacional de Aids. Provavelmente nos próximos relatórios vamos ver a população infectada aumentar.

 
ISTOÉ

 O Ministério da Saúde não tem sabido lidar com as epidemias?

 
Artur Timerman

 Nos quatro últimos anos temos visto uma grande epidemia de sífilis. Se a pessoa tem sífilis, ela também terá HIV. O benzetacil, que é o remédio para tratar sífilis, está em falta. O Ministério fala que aumentou a sífilis porque acabou o benzetacil. É o contrário, acabou o benzetacil porque aumentou a epidemia de sífilis. Toda semana tenho de dois a três pacientes internados para tratar sífilis no sistema nervoso. A penicilina também está acabando no nosso mercado. Isso tudo mostra que existe um sinal de alerta de que as coisas não estão indo bem. O Ministério da Saúde está a reboque.

 
ISTOÉ

 Qual é a cara da  Aids hoje?

 
Artur Timerman

 Uma vez me perguntaram: “Mas, afinal, a aids é a cara do Cazuza ou do Magic Johnson?” Disse que tem as duas fisionomias. Têm pessoas que ainda apresentam aquela cara do Cazuza. Há pacientes que não se tratam, se recusam a fazer os tratamentos até como uma negação da doença. E ao mesmo tempo existem aqueles que estão na luta. E eu os chamo de “heróis da resistência”.

 
ISTOÉ

 As pessoas estão mais lenientes com a Aids hoje?

 
Artur Timerman

 Existe um pensamento raso de que há remédio para a Aids e está tudo certo. Enquanto pensarem assim, as pessoas continuarão tendo um comportamento irresponsável. Houve um retrocesso social com relação à Aids. 

 
ISTOÉ

 O livro do sr., Histórias da Aids, foi lançado no mesmo período do Relatório da Unaids, alertando sobre o aumento de novas infecções no Brasil. Por que ainda é necessário falar sobre a doença?

 
Artur Timerman

 Os números da Unaids mostram que mais do que nunca é necessário falar sobre aids. As pessoas precisam saber que existem mais de 300 mil pessoas vivendo com o vírus do HIV no Brasil sem saber. O aumento do número de casos tem a ver com o fato de a população ter baixado a guarda em relação à prevenção. As novas gerações não viveram aquele holocausto da epidemia nas décadas de 1980 e 1990.

 
ISTOÉ

 O sr. era jovem quando a Aids explodiu no mundo. Como viveu esse período?

 
Artur Timerman

 Eu sou um sobrevivente da Aids. Vivi a liberdade dos anos 70 e 80. Fazíamos tudo naquela época. Eu era da turma do sexo, drogas e rock’n roll. Estudei muito, tinha uma vida extremamente responsável, mas fiz o que a minha geração fez e foi muito bom. Hoje ninguém vai fazer o que fazíamos porque, como disse Cazuza, o nosso prazer virou risco de vida. 

ISTOÉ

 Como foi atender os pacientes na década de 1980, no auge da epidemia?

 
Artur Timerman

 Era uma dizimação de pessoas. Tínhamos a pretensão de intervir na dimensão social das doenças, com aquela prepotência da juventude. Não tínhamos a dimensão humana da medicina. Começamos a ver muitos jovens infectados e aquilo esmagou toda a nossa arrogância. Tínhamos que proporcionar conforto, carinho, ouvir as histórias. Foi um aprendizado no dia a dia, não havia preparo, treinamento, modelo de conduta. Quando a pessoa tinha Aids era como se duas flechas apontassem para a cabeça dela, dizendo “você vai morrer porque fez uma coisa errada”. Sexo e morte eram os dois tabus da nossa civilização.

 
ISTOÉ

 O sr. perdeu 11 colegas de faculdade infectados pelo vírus HIV. Como foi vivenciar isso?

 
Artur Timerman

 Eram colegas muito queridos e eles morreram naquela época que víamos as pessoas definhando, agonizando, sem ter o que fazer. Era uma alerta da progressão da doença. 

 
ISTOÉ

 Entre tantas histórias impressionantes, houve alguma história  que mais marcou o sr.?

 
Artur Timerman

 Sim. A história de um professor de cinema da Universidade de São Paulo. Ele morou em Londres com a esposa na época do sexo, drogas e rock’n roll. Era bissexual. Voltou para o Brasil já doente e com um tipo de câncer que provoca lesões na pele chamado Sarcoma de Kaposi. Era um homem super vaidoso que ficou restrito à cama. A mãe montou um apartamento todo equipado para ele em São Paulo. Um dia ele começou a chamar por ela sem resposta. Ele teve de ir se arrastando até a mãe e, quando viu, ela havia morrido. Depois de três meses, o irmão me ligou desesperado. O professor estava em coma, tinha tomado gardenal. A família me convenceu a fazer a eutanásia. Isso foi em 1994, ainda não tínhamos os remédios. 

 
ISTOÉ

 Na década de 80, o sr. relata que muitos médicos se recusaram a atender pacientes soropositivos. Esse cenário mudou?

 
Artur Timerman

 Hoje o preconceito é muito menor, mas ainda existe. Conheço cirurgiões e dentistas que se recusam a atender pacientes com HIV. Eu até pergunto “quantos pacientes com HIV você atende sem saber?”. E eles me respondem: “a gente vê que eles não têm HIV.”

 
ISTOÉ

 O sr. acredita no desenvolvimento de uma vacina contra o HIV?

 
Artur Timerman

 É difícil o vírus ser atingido pelo modelo de vacina convencional. As pesquisas foram abandonadas a partir do momento em que foram divulgadas informações de que o tratamento reduz a transmissão em 98% dos casos. Tudo o que já se tem até hoje coloca um grande ponto de interrogação sobre a criação de uma vacina. Agora é preciso implementar o tratamento, usar remédios mais seguros e tentar tratar o maior número possível de pessoas. A vacina não é a melhor perspectiva para erradicação do HIV. 

 
ISTOÉ

 O sr. acredita que a ciência está próxima de descobrir a cura para a Aids?

 
Artur Timerman

 Há seis anos, raramente se falava sobre perspectivas de cura, agora é mais comum. As pesquisas têm sido consistentes e com resultados extremamente otimistas. Os estudos com estratégias para chegar à cura estão na fase 2, analisando a eficácia em pequenos grupos de pessoas. Mas nenhum está sendo feito no Brasil. 

 
ISTOÉ

 Daqui a quanto tempo teríamos a cura?

 
Artur Timerman

 A Organização Mundial da Saúde estabeleceu o ano de 2030 como factível para controle da Aids, pressupondo o tratamento de todas as pessoas. Talvez seja uma visão otimista demais. A dificuldade que teremos será implementar tratamento universal para pacientes com 20 ou 25 anos de idade. Acredito que nos próximos cinco anos já tenhamos uma medicação consistente para impedir a replicação do vírus dentro do organismo. Mas seria alguma coisa para complementar o tratamento que já temos disponíveis. 

 
ISTOÉ

 O que o mundo aprendeu com a epidemia de Aids?

 
Artur Timerman

 A lutar contra o preconceito, a mostrar que a mobilização é importante. A grande lição é a luta contra o preconceito.