Frequentadora da Casa Rosada desde 2003, como primeira-dama e depois como presidente, Cristina Kirchner está perto de deixar o poder na Argentina. No domingo 9, a população está convocada para votar nas eleições primárias, que decidirão quem concorrerá à Presidência em 25 de outubro. Diferentemente do Brasil e dos Estados Unidos, onde as primárias são disputas internas dos partidos, lá elas funcionam como uma espécie de primeiro turno. Apesar da crise econômica e de escândalos como a suspeita morte do promotor Alberto Nisman, na véspera de depor no Congresso contra Cristina, em janeiro, a presidente terminará seu governo com uma aprovação ao redor de 50% e sem nenhuma vontade aparente de sair da política. Por isso, quem emergir das primárias deverá lidar com a sombra de Cristina – e do peronismo, há 70 anos a corrente política dominante no país.

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Apesar da crise, Cristina Kirchner deixará o poder com a
aprovação de mais da metade dos argentinos

No domingo, os peronistas estarão divididos entre quatro representantes: Daniel Scioli, candidato governista, Sergio Massa, José Manuel De La Sota e Adolfo Rodriguez Saá, líderes regionais. Somando suas intenções de votos, eles mostram que o velho Partido Justicialista de Juan Domingo Perón ainda seduz mais da metade dos argentinos, ecoando uma das mais famosas frases do mitológico caudilho argentino: “No fundo, todos somos peronistas, só que alguns ainda não se deram conta.” Não só os opositores nunca foram capazes de estabelecer uma força para substituí-lo, como, desde Perón, em 1946, nenhum governo não-peronista (exceto os militares) conseguiu terminar seu mandato. Dessa vez, o único que se arrisca a desafiar essa lógica é o candidato da direita, Mauricio Macri, ex-prefeito de Buenos Aires e em segundo lugar nas pesquisas. Na liderança, aparece Scioli.

Hesitante na escolha de apadrinhar Scioli, um empresário que chegou a ser vice de Néstor, mas que nunca foi exatamente próximo de Cristina, a presidente tem demonstrado que lutará para garantir sua influência nos rumos do país. Jorge Arias, diretor da consultoria Polilat, de Buenos Aires, lembra que ela convive com o poder há mais de 20 anos – no começo, em esfera local, na província de Santa Cruz, e depois com a ascensão de Néstor, com abrangência nacional. “Está claro que Cristina gosta disso e não será fácil voltar a ser uma cidadã comum”, disse à ISTOÉ. “É difícil imaginá-la sem exercer protagonismo na próxima etapa político-institucional da Argentina.”

Na estratégia da presidente, há duas peças-chaves para mantê-la poderosa no tabuleiro político. Uma delas é o fortalecimento do grupo de jovens militantes conhecido como “La Cámpora”, liderado por seu filho, Máximo Kirchner. Nas próximas eleições, eles devem tentar a prefeitura de ao menos seis cidades na província de Buenos Aires. A outra peça se chama Carlos Zannini, braço direito da presidente e vice na chapa de Scioli. Para Jorge Arias, Zannini será a “espada de Dâmocles” que Cristina colocou sobre a cabeça de Scioli para mantê-lo “disciplinado”. O cientista político se refere ao mito grego do homem que trocou de lugar com um tirano por um dia, mas teve que se submeter à ameaça de uma espada pendurada sobre ele.

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A vida de Cristina será mais difícil se o vencedor for um dissidente de seu próprio governo. Ex-chefe do gabinete presidencial, Sergio Massa foi o grande líder das eleições legislativas de outubro de 2013, quando o governo perdeu nos maiores colégios eleitorais. Uma vez enterrado o sonho de “Cristina eterna”, chegou a vez dele brilhar. Jovem, carismático e, claro, peronista, Massa desafiou a presidente e começou a acumular apoio para construir uma alternativa ao kirchnerismo.

Considerado o favorito para a suces­são com dois anos de antecedência, Mas­sa se beneficiou do fato de que Cristina, segura de que teria um novo mandato, não havia construído um herdeiro político. Mas o advogado perdeu fôlego e agora aparece em terceiro nas pesquisas de intenção de voto. “Era muito difícil sustentar esse tom de vitória por dois anos como deputado”, afirma Santiago Lacase, diretor da Ágora Assuntos Políticos, de Buenos Aires. Em junho, Massa tentou construir uma aliança com Macri, já que ambos têm dificuldade em expandir sua influência para províncias mais pobres no interior do país. O acordo, porém, naufragou.