Quando surgiram os primeiros casos de Aids, no início da década de 80, um dos maiores sonhos dos especialistas era ter à mão, o mais rápido possível, uma vacina capaz de imunizar a todos e barrar o crescimento da epidemia. Depois de mais de 20 anos de pesquisa, essa formidável arma contra o HIV – o vírus responsável pela doença – ainda não está disponível, mas a ciência está cada vez mais próxima de obtê-la. Hoje, existem no mundo mais de 70 estudos que já avaliam a eficácia de vacinas em seres humanos. É um número significativo e alentador, principalmente quando se sabe que, há dez anos, existiam apenas cerca de dez trabalhos sobre vacinas.

Na corrida pela vacina, o Brasil não está fora. Na semana passada, o País entrou no circuito das pesquisas avançadas ao iniciar os testes das vacinas AidsVax, do laboratório americano VaxGen, e a Alvac, da francesa Aventis Pasteur. É a primeira vez que uma vacina contra a Aids é avaliada no País na chamada fase dois de testes. Isso significa que a vacina atingiu um desenvolvimento bastante adiantado. Para melhor compreensão, basta dizer que a criação de qualquer droga passa por várias fases. A primeira é a pré-clínica, com testes em laboratório. Depois vem a clínica, em humanos. Esta etapa é dividida em fases um, dois e três. A um envolve pessoas saudáveis e avalia a segurança do remédio. A dois procura ampliar os conhecimentos sobre segurança e, no caso das vacinas, avaliar sua capacidade de realmente produzir imunidade ao vírus. Depois disso, restará a fase três, na qual finalmente se avaliará a eficácia da medicação.

Os testes com as duas vacinas fazem parte do Projeto Praça Onze, coordenado por Mauro Schechter, chefe do laboratório de pesquisas em Aids do Hospital da Universidade Federal do Rio de Janeiro, e Lee Harrison, pesquisador da Universidade de Pittsburgh, dos Estados Unidos. Os produtos também estão sendo testados nos Estados Unidos, no Haiti e em Trinidad e Tobago. No Rio de Janeiro, serão vacinados 40 voluntários. Alguns receberão as duas vacinas, outros apenas uma e os demais receberão placebo (vacina sem princípio ativo). O microempresário R.R.M., 38 anos, foi o primeiro a participar dessa fase do experimento. Casado e pai de dois filhos, ele está feliz em participar do experimento. “Fico orgulhoso de ser brasileiro e ver o País participando desse estudo”, diz.

Por terem começado os testes primeiro, os americanos estão chegando ao fim do prazo do estudo. Seus resultados, embora preliminares, são animadores. “As vacinas induzem à resposta imunológica que desejamos. Mas não é prova definitiva de que protegem”, diz Schechter. Ele lembra que o caminho é longo até a possível produção da vacina. “Numa perspectiva otimista, talvez possamos anunciar em 2006 que temos a fórmula e podemos partir então para a produção”, pondera o médico.

Medos – A afirmação de Schechter pode funcionar como banho de água fria em quem imaginava que seria possível dispor de uma vacina em 2002, por exemplo. Mas só a possibilidade de o mundo contar com um produto do tipo nos próximos anos é uma vitória e tanto. Afinal, no início das pesquisas, os cientistas tinham tantos desafios a transpor que as vacinas pareciam um sonho irrealizável. O primeiro temor era o de que elas trouxessem mais dor de cabeça do que solução. É fácil entender a razão do medo. Em geral, as vacinas são feitas a partir de partes do agente contra o qual se espera uma imunização. É o velho princípio de colocar o corpo em contato com o inimigo para fazê-lo reagir, criando anticorpos. No caso da vacina contra o HIV, portanto, usam-se partes do vírus que não causam doença para estimular a formação de anticorpos e reforçar a ação dos linfócitos (células de defesa do organismo) contra a enfermidade. “Os cientistas tinham medo de que pedaços do HIV causassem a doença”, conta Artur Timerman, infectologista de São Paulo.

O conhecimento do vírus, porém, levou os cientistas a identificar partes do HIV que parecem inofensivas. Entre elas, estão as proteínas GP120 e GP160, utilizadas pelo vírus para entrar nas células a serem infectadas. Mas ainda é importante saber com exatidão qual partícula viral estimulará a defesa do corpo. Um dos empecilhos em encontrar as partes ideais é que o vírus sofre mutações com frequência. Por isso, uma proteína presente num subtipo de HIV pode não existir em outro. Isso significa que uma vacina poderia imunizar contra um tipo de vírus, mas não contra outro que não possua a proteína a partir da qual foi feito o imunizante. “Esse é um dos desafios para a criação de vacinas”, afirma o infectologista Caio Rosenthal, de São Paulo.

Mas há avanços para driblar o problema. Um dos mais recentes está descrito num artigo da última edição da revista científica Nature. A publicação dá detalhes sobre o trabalho dos pesquisadores Anthony Fauci, dos Estados Unidos, e Giuseppe Scalla, da Itália. Os dois identificaram uma proteína na superfície do vírus que parece ser comum a todos os subtipos de HIV. “Achamos que a partícula é essencial à sobrevivência do vírus e, por isso, estaria presente em todos os subtipos”, disse a ISTOÉ Giuseppe Scala. Se der certo, será a primeira vacina universal produzida. Por enquanto, os testes estão dando resultados positivos, mas em macacos. Em 2002, começam os estudos em humanos.

Alternativas – Os estudiosos também já sabem que só a formação de anticorpos não é suficiente para garantir a imunidade contra o HIV. “Sozinhos, eles parecem não combater a infecção”, afirma Esper Kallás, infectologista da Universidade Federal de São Paulo. Por isso, começou-se a investir em vacinas que também potencializem a ação dos linfócitos contra o vírus. E já há algumas desse tipo sendo testadas. As duas estão em testes no Brasil, por exemplo, tentam induzir não só à formação de anticorpos, mas também incentivar a ação das células de defesa.

Enquanto a vacina não chega, a medicina comemora os progressos no tratamento da doença. A variedade cada vez maior dos remédios que impedem a multiplicação do HIV no corpo é um deles. Até 1987, existia apenas o AZT. Atualmente, são 16 drogas indicadas para essa finalidade. A variedade permite aos médicos combinar as medicações de acordo com as necessidades do paciente. Se, por exemplo, o doente é diabético, o especialista receitará um remédio que não agrave a doença. Sem a gama de opções disponíveis hoje, o procedimento seria impossível. O resultado seria um doente com a Aids sob controle, mas com a diabete exigindo cuidados. “Hoje é possível darmos um tratamento cada vez mais individual que oferece mais qualidade de vida ao paciente”, afirma o infectologista Michal Gejer, do Hospital Emílio Ribas, em São Paulo.

Os próprios remédios também avançaram. Os mais modernos apresentam bem menos efeitos colaterais. Entre eles, estão náuseas, gastrite e diarréia. O ex-segurança Antônio Alves, 35 anos, sofreu vários desses desconfortos. Com a troca de remédios, amenizou muitos dos efeitos e agora, com exercícios e antibióticos, se esforça para controlar fortes dores nas pernas. “Já tive sintomas insuportáveis. Hoje estou bem e ganhei peso”, diz. O supervisor S.T., 50 anos, também sofreu muito. “Tive anemia e outros efeitos”, lembra. A substituição dos remédios que causavam os problemas tornou sua vida mais fácil. “Às vezes tenho problemas intestinais, mas suporto bem”, diz. S.T., no entanto, ainda convive com a lipodistrofia, outro desagradável efeito caracterizado pela alteração na distribuição da gordura corporal. Porém, o supervisor pretende resolver o problema. Quer fazer tratamento estético para voltar a ter as formas mais harmoniosas. Sabe que há opções para isso. Afinal, o tratamento da Aids, hoje, não apenas controla o vírus, como oferece a possibilidade de o paciente viver melhor. 
 

 

Colaborou Francisco Alves Filho

EXPERIÊNCIA MARCANTE
Em 1995, a estudante Ana Lúcia Ricon de Freitas, 36 anos, tornou-se a primeira brasileira a participar de testes com uma vacina contra o HIV (V-108, do laboratório United Biological Incorporated). “Se desse certo, beneficiaria muita gente e até a mim mesma”, diz. Mas não deu. Constatou-se que a eficácia do imunizante era pequena. Com a experiência, Ana Lúcia descobriu o preconceito em pessoas próximas. “Alguns me evitavam”, lembra. A decepção foi tanta que ela planejou suicídio. Hoje ela estuda direito e se diverte em viagens de motocicleta. Diz que aprendeu muito. “Faria tudo novamente”, afirma.

 

NÃO TENHO MEDO

“Após a separação de minha primeira mulher, tive namoradas e tomei precauções. Isso me levou a fazer um teste de HIV. No hospital, me declarei disposto a participar de estudos. Fui contatado e me tornei voluntário. No começo fiquei chocado. Mas vi que o projeto é sério. Não tenho medo. Me sinto fazendo algo que beneficiará muitas pessoas. Minha mulher teve um impacto quando soube, mas compreendeu. Funcionários da fábrica brincam: ‘Você não está com Aids?’ Uma amiga fez perguntas sem preconceito. Meus filhos não temem que aconteça algo comigo. Seria muito bom que eles vivessem num mundo sem Aids.”

R.R.M., 38 anos, casado, dois filhos e voluntário dos testes com as vacinas, no Rio, que, apesar de permitir ser fotografado, prefere não divulgar o nome