Ainda não caiu a ficha do paranaense Rodrigo Muxfeldt Gularte, 32 anos, nem a do carioca Marco Archer Cardoso Moreira, 43, os dois brasileiros condenados à morte na Indonésia por tráfico de cocaína. Durante os quatro dias – entre a quarta-feira 9 e o sábado 12 – em que receberam a reportagem de ISTOÉ na cadeia de Tangerang, nas proximidades de Jacarta (capital indonésia), eles passaram boa parte do tempo relembrando suas aventuras e até traçando planos para o futuro. Não demonstraram, em nenhum momento, preocupação com a possibilidade, cada vez mais próxima, de enfrentar um pelotão de fuzilamento. Na quinta-feira 17, a Suprema Corte confirmou, em última instância, a sentença de morte contra Marco.

É muito provável que essa descontração se deva às condições em que se encontram encarcerados. Cada um ocupa uma cela com televisão, ventilador, geladeira, forno elétrico e aparelho de som. Há ainda um jardim privativo onde os brasileiros criam pássaros, podam bonsais, alimentam os peixes que nadam em um laguinho e ainda cuidam de duas gatas, uma delas chamada Tigrinha. Não são responsáveis pela faxina, têm as roupas lavadas e às vezes pedem comida em restaurantes da região. “Aqui é legal. É como se fosse uma pousada, só que jogaram a chave fora”, diz Rodrigo, que na casa da família, em Curitiba, estava acostumado ao conforto de sua suíte com sauna. Marco também não reclama das atuais condições de sua cela, mas confessa sentir saudade dos apartamentos na Holanda, nos Estados Unidos e em Bali.

Inferno – O conforto da cadeia de Tangerang, porém, pode estar com os dias contados, principalmente para Marco. Ele provavelmente terá que aguardar o dia do fuzilamento em condições bastante adversas, num presídio no sul do país, sem carcereiros amigáveis e amontoados com os mais de dez mil presos mulçumanos, longe de qualquer regalia, independentemente de condição financeira. Marco foi preso em Jacarta, em agosto de 2003, flagrado transportando 15 quilos de cocaína enrustidos nos tubos de sua inseparável asa-delta. Em julho de 2004, foi condenado à morte e, em janeiro deste ano, a sentença foi reafirmada em segunda instância e confirmada agora pela Suprema Corte.

Neste estágio, só lhe restará um caminho: o perdão presidencial. Os dois brasileiros, no entanto, atraíram profunda antipatia dos indonésios, e isso pode prejudicar uma decisão política para o caso. Quando Marco foi flagrado com a droga, tentou fugir, o que desencadeou uma perseguição policial cinematográfica transmitida ao vivo pelas tevês de todo o país. No julgamento de Rodrigo, a platéia pedia em coro: “Morte aos traficantes ocidentais cristãos!” Mas essa dramática situação parece não incomodar os brasileiros. Nas conversas mantidas com ISTOÉ, Marco contou, inclusive, que recentemente encomendou a Casemiro, um amigo no Rio de Janeiro, o último modelo de asa-delta disponível no mercado internacional.

O surfista Rodrigo foi preso no aeroporto de Jacarta, só que em julho do ano passado. Transportava seis quilos de cocaína dentro de suas pranchas. Em fevereiro, foi condenado em primeira instância. Ele também parece não se assustar com a eventual proximidade da execução. Aposta que as relações políticas de sua família poderão influenciar seu destino. Os diplomatas brasileiros em Jacarta trabalham para reverter as sentenças. A favor deles pesa o fato de só um traficante ter sido executado até hoje, dos 30 condenados sob as novas e duras leis antidrogas indonésias, em vigor desde 2000. Era um indiano muito pobre. Pela expectativa otimista deles, será possível reduzir a pena de Rodrigo para prisão perpétua, em segunda instância, negociando uma redução maior ainda na terceira, para 20 anos, com soltura em sete, talvez dez anos.

Não são previsões confortáveis, mas os brasileiros agem como se não houvesse outro destino que não o de escapar da pena capital. No dia-a-dia, eles não economizam palavras. Marco fica planejando sua volta a Ipanema e Rodrigo às praias de Floripa. Têm até um roteiro de prosa à beira-mar planejado. Imaginam-se contando aos amigos como se livraram da fria em que se meteram. Com desembaraço, explicam que dividem a mesma cadeia, mas que chegaram lá por trajetórias diferentes no mundo das drogas. Rodrigo foi mais usuário do que traficante, começou cheirando solvente aos 13 anos. Marco entrou no tráfico aos 17, já no topo da pirâmide, transacionando diretamente com os cartéis colombianos. Faziam parte de gangues diferentes. Na cadeia, formaram um laço instantâneo. Ficaram amigos a ponto de dividir prato e colher.

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Visitas – Rodrigo e Marco apostam que transformarão o limão numa limonada. Estão com tudo pronto para botar um diário na internet. Negociam exclusividade na cobertura jornalística e já começaram a escrever livros com a experiência. Enquanto esperam os trâmites jurídicos, os dois recebem visitas sem formalidades, todos os dias. Rodrigo já recebeu a família, a namorada – a empresária carioca Adriana Andrade – e até o parceiro Dimitri Papageorgiou, um garotão com mais de 30 anos, carioca de pais gregos, acusado de ser o líder da quadrilha que o contratou para o malfadado transporte de cocaína em suas pranchas de surfe. Ele apareceu na cadeia para visitar o amigo e deixou com Rodrigo dois milhões de rúpias (a moeda indonésia) para ele se virar, dinheirama que vale só R$ 500. Mas agora Dimitri não vai mais poder ajudar: ele foi preso, em fevereiro, pela Polícia Federal, no Brasil.

Marco já recebeu a visita de amigos de Bali e de uma senhorita conhecida apenas como “Dragão de Komodo”, sua namorada indonésia. A moça também é sentenciada, está na área feminina da prisão. Sua mãe, dona Carolina, já esteve com ele duas vezes. A última foi no seu aniversário, em outubro, quando conseguiu promover uma festinha com brigadeiros e refrigerantes. Depois, tirou uma soneca na cela do filho. Na cadeia, os dois brasileiros relatam já ter recebido visitas íntimas e contam que puderam até apreciar um chopinho gelado, cortesia de um chefão local, preso no mesmo pavilhão. Lá, a balada não pára nunca.

A comida não é má, até porque Marco tem curso de chef na Suíça e dá um show na cozinha. Na semana retrasada, seu cardápio incluía salmão, arroz à piemontesa e leite achocolatado com castanhas para sobremesa. O fornecedor dos alimentos é Dênis, um ex-preso tornado amigão. Por celular, ele pega a lista e traz as compras do supermercado Hypermart. Quando Dênis está ocupado e a geladeira vazia, Marco telefona a cobrar para a mãe, no Rio, que liga para a mãe de Rodrigo, em Curitiba, que aciona a Embaixada do Brasil, que despacha um motorista para garantir o fome zero da dupla.

A expectativa de que suas ações possam ficar impunes dá um tom surrealista a todas as conversas mantidas com eles. Mas, em determinados momentos, parecem colocar os pés no chão. ‘‘Por favor, brother, quando você for escrever, dê uma força, passe uma imagem positiva nossa. Bota aí que eu quero trabalhar dez anos para o governo, dando palestras para as crianças sobre a roubada que é se meter com o tráfico de drogas’’, diz Rodrigo. Do lado de cá do mundo, as mães de Rodrigo e Marco – mulheres sofridas, esperançosas e guerreiras – lideram uma campanha pela liberdade dos ‘‘garotos’’ – como tratam os dois barbados. Depois de gastarem os tubos com eles, estão raspando os cofres para tentar resgatá-los. Além do incondicional amor materno, usam a bandeira do repúdio à pena de morte, de forte apelo na fatia esclarecida da humanidade. Dona Clarisse, mãe de Rodrigo, mobiliza o Itamaraty para proteger seu filho. Dona Carolina, mãe de Marco, obteve da Câmara dos Deputados o envio de um apelo de clemência ao Parlamento da Indonésia. A proposta, do deputado Fernando Gabeira (PV-RJ), foi aprovada em plenário com apenas um voto contra, do deputado Jair Bolsonaro (PFL-RJ).

A estratégia é varrer o assunto drogas para baixo do tapete e dirigir a sensibilidade dos brasileiros contra a pena de morte. O inevitável choro das mães em rede nacional de televisão poderá criar as condições políticas para que o presidente Lula peça clemência ao seu colega indonésio, Susilo Bambang Yudhoyono. A dificuldade maior será obter uma resposta positiva.

Linha dura – As fichas de Rodrigo e Marco certamente cairão quando perceberem que o fuzilamento do indiano, ocorrido em fevereiro, sinaliza para o pior. É que a execução saiu por insistência do general Togar Sianipar, chefe da polícia antidrogas da Indonésia. O homem está punindo severamente o narcotráfico. Togar, militar linha-dura, prometeu livrar o país das drogas até 2015, combatendo também a corrupção do sistema judicial e fechando o balcão de negócios a diplomatas e criminosos. Seu plano é simples e brutal: fuzilar os traficantes que pisarem no país. O povão muçulmano o apóia. E o pedido da massa deixa o governo firme para rejeitar as campanhas internacionais por direitos humanos, livre de dúvidas existenciais sobre a pena de morte, tema que as famílias pretendem usar para sensibilizar a opinião pública internacional.

Na Indonésia, o modelo prende-e-mata já deu certo na política, em 1965, quando o país se dividia entre esquerda e direita. Em quatro meses, o general Suharto implantou o capitalismo fuzilando quase um milhão de comunistas.


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