O estudante carioca Sérgio de Almeida, 16 anos, começou a fumar há um ano. Consome menos de um maço por dia e se iniciou com os colegas. “Fui influenciado por eles e pelos anúncios”, afirma. Sua mãe, Leila, o alerta para os males do fumo, mas o garoto não planeja parar. “O cigarro me ajuda a relaxar. Me considero um viciado em nicotina”, diz. Adolescentes como Sérgio são um dos principais alvos da guerra entre a indústria do tabaco e as autoridades brasileiras. De um lado, a imagem passada pelos fabricantes associa o fumo ao sucesso e à juventude. De outro, são apresentados dados alarmantes. “A maioria dos dependentes começa a fumar antes dos 19 anos”, diz Jacob Kligerman, presidente do Instituto Nacional do Câncer (Inca), no Rio. A instituição coordena a maior ofensiva do Ministério da Saúde contra o cigarro na história do País. Além de conscientizar os jovens, o governo quer incentivar fumantes a largarem o vício. É cada vez maior a lista de locais onde é proibido fumar, a publicidade está praticamente extinta e a partir de fevereiro do ano que vem os maços trarão estampadas fotos chocantes de estragos causados pelo cigarro. Os números justificam o rigor: temos mais de 30 milhões de fumantes e, segundo o Ministério da Saúde, o vício mata 80 mil brasileiros por ano.

Por isso, o cerco ao fumo nunca foi tão apertado. Em setembro, o Rio se tornou o primeiro Estado a proibir o cigarro nas escolas. O autor da lei é José Richard, secretário municipal de Trabalho. “A idéia é proteger o fumante passivo e educar os jovens”, conta Richard. Na publicidade, os anúncios estão restritos aos pontos de venda e os patrocínios dos fabricantes a eventos culturais e esportivos acabam em 2003. As companhias são obrigadas a submeter os produtos a medições anuais da quantidade de nicotina e alcatrão e a partir do ano que vem as expressões “light” e “baixos teores”, consideradas enganosas, sumirão dos maços. De fato, quem opta por esses produtos consome mais cigarros para atingir o grau de satisfação.

Perseguição – Mas talvez a providência mais visível do cerco seja a publicação das fotos nas embalagens. Numa delas, uma doente grave aparece num leito de hospital para ilustrar a advertência de que fumar pode causar câncer. No meio dessa guerra, o fumante se sente acuado. “Há discriminação”, reclama Almeida. “O pai de um amigo o proibiu de sair com nosso grupo. Alguns acham que quem fuma cigarros acaba usando drogas. Não tem nada a ver”, diz. O diretor do Inca explica que não tem essa intenção. “O objetivo do programa é combater o hábito e não discriminar o fumante”, afirma. Mas mesmo nos assuntos íntimos, os viciados em tabaco são preteridos. “Até quando beija, o fumante ouve reclamação”, conta o médico Clóvis de Paula, 47 anos, que largou o fumo há quatro meses.

Os fabricantes acompanham apreensivos a ofensiva anti-fumo. A indústria do tabaco gira anualmente cerca de R$ 6,6 bilhões. “Mas com os impostos e encargos, o lucro cai para R$ 1,9 bilhão”, lamenta Maria Claudia Souza, diretora da Associação Brasileira da Indústria do Fumo. Maria Claudia afirma que a proibição da publicidade ainda não teve reflexos na venda dos cigarros porque as campanhas ainda estão vivas na mente do consumidor. “Daqui para a frente é que sentiremos a diferença”, acredita. Ela acha que no Brasil há um excesso de regulamentação, maior do que acontece nos Estados Unidos, onde a luta contra o tabaco é ferrenha. “Lá as medidas restritivas tratam apenas do consumo, aqui amarram a produção industrial e a publicidade”, diz.

Em compensação, os prejuízos causados pelos tribunais americanos às indústrias estão longe de ter similar no Brasil. Em junho, a Philip Morris foi condenada a pagar a indenização recorde de US$ 3 bilhões a um corretor de seguros americano fumante que teve câncer. Por aqui, a causa que chegou mais longe foi movida pela família do mecânico Nélson Alves, que morreu aos 39 anos de infarto. Nélson consumia cinco maços por dia e o médico que deu seu atestado de óbito escreveu que o tabagismo foi a “causa que contribuiu decisivamente para a morte”. Em 1997, a Justiça condenou a Souza Cruz a pagar indenização de R$ 90 mil. Em maio de 2000, no entanto, a 10a Câmara Cível do Tribunal de Justiça declarou improcedente a sentença, sob a alegação de que o fumante é responsável por seus atos. Em junho do ano passado, a Justiça alagoana condenou a Souza Cruz a dar uma indenização de 30 mil salários mínimos para custear o tratamento de João Lins, fumante que sofria de câncer do pulmão. A empresa recorreu, ganhou a causa e Lins morreu em fevereiro sem receber nada.

Mas o ataque ao fumo se intensifica também na medicina. A ciência aprimorou seu arsenal na luta contra o vício graças ao aprofundamento das pesquisas sobre os efeitos do tabaco. E o conhecimento gerado possibilitou o desenvolvimento de terapias eficazes. “Hoje é mais fácil parar de fumar”, garante o psiquiatra Montezuma Ferreira, do Ambulatório de Tabagismo do Hospital das Clínicas de São Paulo. Um dos passos que permitiu essa vitória foi entender a relação de dependência que a nicotina causa no fumante. Descobriu-se que o cérebro possui receptores de nicotina, espécies de fechaduras localizadas nas células nas quais o composto se encaixa, como se fosse a chave. A partir daí começam a ser liberadas no corpo substâncias como a serotonina, catecolamina e dopamina. Elas estão envolvidas no processamento de sensações como bom-humor e relaxamento. Com o tempo, o corpo se acostuma com a nicotina e precisa cada vez mais dela para sentir as mesmas coisas. Está consolidada a dependência.

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Outra vitória foi aprimorar o conhecimento sobre os males causados pelas tragadas. Sabe-se que, além da nicotina, o outro vilão é o alcatrão. Por onde passa, causa alterações nas células que podem levar ao desenvolvimento de vários tipos de câncer, como de pulmão e boca. Só para se ter uma idéia, segundo o pneumologista José Rosemberg, um dos pioneiros no combate ao fumo no Brasil, o cigarro é responsável por 90% dos casos de câncer de pulmão e aumenta em torno de 30% as chances de aparecimento dos outros tumores (leia sobre outros malefícios à pág 86).

Filhos – O cigarro também é prejudicial para quem convive com a fumaça, o fumante passivo. Um levantamento feito pela equipe de Rosemberg avaliou os efeitos do tabagismo na saúde de 15 mil crianças entre zero e um ano. Nas famílias em que o pai fuma, cerca de 25% da garotada apresentou problemas respiratórios. Quando a mãe é fumante, o número passa para 49%, pois ela tem mais contato com os filhos. Se o casal fumar, a estatística pode chegar a 70%.

A partir desses conhecimentos, a ciência se armou para vencer a batalha. Hoje, há várias alternativas contra o cigarro. Algumas se baseiam na reposição de nicotina. O fumante é poupado dos efeitos da interrupção repentina do hábito, como a irritabilidade. Por isso, oferece-se ao corpo a nicotina, mas em doses cada vez mais baixas até que o ele dispense a substância. Uma das propostas é o chiclete de nicotina. O tratamento dura entre oito a doze semana. A pessoa masca a quantidade de gomas que corresponder ao número de cigarros consumidos por dia. Outra opção é o adesivo de nicotina. Ele solta gradativamente quantidades da substância e deve ser usado por quatro semanas. Há até técnicas para quem, durante o tratamento, sente um desejo incontrolável de fumar. Trata-se de um spray de nicotina. Ao bater aquela vontade de tragar, o fumante pode borrifar um pouco do líquido no nariz. O produto só existe nos Estados Unidos e na Europa.

Mas também há saídas que não usam a reposição de nicotina. Trata-se do uso de antidepressivos. O mais famoso é a bupropriona (Zyban/ da empresa Glaxowellcome). Ainda não se sabe como ele funciona contra a dependência. Acredita-se que a droga aumente o efeito de substâncias como a serotonina e a dopamina. Assim, o fumante teria as mesmas sensações de bem-estar causadas pela nicotina. Outro antidepressivo usado é a nortriptilina (Pamelor, da Novartis). Mas não há trabalhos conclusivos comprovando sua eficácia.

Dificuldade – Esses tratamentos são recomendados para pacientes que fumam mais de quinze cigarros por dia, o que configura alto grau de dependência. No entanto, os próprios médicos sabem que parar de fumar não é fácil. Além da dependência causada pela nicotina, há trabalhos mostrando que determinadas pessoas têm mais dificuldade de se livrar do cigarro. São aquelas que fumam mais de dois maços por dia, trinta minutos após acordar, têm depressão, bebem muito e convivem com outros fumantes. Também parece existir uma propensão genética a fumar, o que dificultaria ainda mais o abandono do hábito. Porém, a relação entre a genética e o fumo ainda não está esclarecida. Talvez essas razões expliquem porque fumantes como as comerciantes Fernanda de Souza, 28 anos, e Claudia da Silva, 32 anos, façam parte da multidão que luta contra o vício. Elas dirigem um café, em São Paulo, onde não é proibido fumar. Fernanda tentou largar o cigarro duas vezes e não conseguiu. A primeira foi quando ela e Claudia visitaram um amigo internado no hospital com problemas pulmonares. “Fiquei impressionada com o estado dele e a dificuldade de respirar. Deixei de fumar”, conta. A amiga Claudia seguiu a decisão da colega. As duas ficaram cerca de dois anos sem pôr um cigarro na boca. Há cerca de um ano e meio, no entanto, Fernanda teve uma recaída. “Comprei um maço”, lembra. O ato contagiou Cláudia. “Fumar deixa o cafezinho mais gostoso. Mas toda vez que acendo um cigarro penso no mal que ele faz para a saúde”, diz a comerciante.

É por isso que em casos como esses, nos quais o cigarro é usado automaticamente, é fundamental aliar ao tratamento farmacológico a terapia cognitiva comportamental. A técnica ensina o paciente a se livrar dos hábitos que o levam a fumar. Primeiro identificam-se os gatilhos que o fazem pegar um cigarro. Depois, criam-se alternativas para não cair na armadilha. Se a pessoa acorda e acende um cigarro, os terapeutas a aconselharão a tomar banho primeiro e depois café. “O cérebro da pessoa está modulado a ter este comportamento”, ressalta Jaqueline Issa, do Instituto do Coração, em São Paulo. É como se o cigarro fosse uma muleta psicológica. O motoboy Luiz Figueiredo, 47 anos, de São Paulo, percebeu isso há uma semana, quando deixou de fumar com a ajuda de piteiras que absorvem a nicotina. “Não é a nicotina que me faz falta, mas não ter nada para colocar na mão”, conta.

Assim como Figueiredo, muitos conseguem abandonar o vício. Para se ter uma idéia, 25% dos pacientes que usam remédios e a terapia cognitiva, continuam sem fumar depois de um ano do tratamento. A porcentagem é considerada uma vitória, já que se trata de uma briga contra dependência química, um dos problemas mais difíceis de serem combatidos. Mas os médicos alertam que quando se fuma mais de quinze cigarros diariamente, dificilmente o fumante consegue parar sozinho. Em 90% dos casos ocorrem recaídas. Também há terapias como a acupuntura que pode auxiliar. O objetivo é evitar o surgimento de sentimentos como ansiedade, que muitas vezes disparam a vontade de fumar.

A luta para amenizar os efeitos do cigarro está tão forte que empresas estão investindo em programas de auxílio a funcionários dependentes. O Grupo Pão de Açúcar é uma delas. Há dois anos, a companhia dá aos funcionários informações a respeito do cigarro, apoio psicológico e tratamentos. Para isso, a empresa mantém parceria com clínicas. A analista de recursos humanos Rosmari Gomes, 39 anos, foi uma das adeptas do programa. Em maio, ela se livrou do vício que sustentava desde os quinze anos. “Tentei parar sozinha. Só consegui porque tive ajuda”, diz.

Colaborou Mônica Tarantino

Da ficção à realidade
Ao encarnar o papel-título da minissérie Presença de Anita, a atriz Mel Lisboa, 19 anos, chamou a atenção, entre outros motivos, pelos vários cigarros consumidos. Fez tanta fumaça que alguns telespectadores reclamaram de apologia ao fumo. Não se sabe se alguém foi influenciado pela telinha, mas no elenco nasceu uma fumante: a própria Mel. “Poderia apenas fingir. Preferi fazer tudo de verdade”, conta. Hoje, ela consome quase um maço por dia. “Comecei porque quis. Posso parar quando quiser”, acredita. A atriz acha importante haver informação sobre os males do tabagismo, porém não simpatiza com a determinação do governo de se pôr imagens de pessoas doentes nas embalagens. “Estão forçando a barra. As pessoas devem poder fazer o que quiserem com o corpo”, diz. E dá uma sugestão que imagina ser mais eficaz: “Deviam aumentar o preço do cigarro.”

 

O perigo do vício a bordo
O veto ao tabagismo em aviões está levando alguns passageiros a recorrer a um expediente perigoso: fumar no banheiro. Segundo o comandante Carlos Camacho, do Sindicato Nacional dos Aeronautas, o fumante permanece mais tempo no toalete ou coloca o produto em copos para despistar. O comandante Ronaldo Jenkins, investigador de acidentes aéreos, lembra que o acidente do Boeing 707 da Varig, ocorrido em 1973 na França – causado por um incêndio iniciado por uma ponta de cigarro lançada no lixo do banheiro –, provocou a proibição do vício nesse espaço. Reclamações de fumantes ocorrem principalmente em vôos longos. O executivo Geovani Rocha (foto), do Rio, diz que deveria ser criada uma área para fumantes em viagens distantes. Já o brigadeiro Mauro Gandra chama a atenção para outro perigo. De acordo com ele, o alcatrão é capaz de danificar o sistema de pressurização do avião.

 


Fumantes na da passivos
O contra-ataque dos fãs do tabaco vem aí. A associação Libertas, criada em setembro, batalha pelo direito ao cigarro e pretende assegurar juridicamente a liberdade de fumar sem ser incomodado. “Queremos locais reservados em aeroportos e restaurantes e vôos exclusivos para fumantes”, afirma Manoel Lessa, porta-voz do grupo. A entidade critica as campanhas. “O fumante é tratado como caso de polícia. A preocupação deveria ser com os males do tabagismo”, diz. Lessa, que não fuma, lançou a Libertas com dois amigos – um deles ex-fumante – devido às discussões que tinham sobre cigarro. O associado número um, o médico paulista Ithamar Stocchero (foto), 50 anos, 30 cigarros por dia, enfatiza que pode escolher como quer viver e morrer. “Tenho raiva de ser discriminado. Não quero impor minha fumaça a ninguém, mas poder fumar em espaços dignos e arejados”, conclui.

 


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