O diplomata quem tem a missão de combater o preconceito no mundo diz que, sem o apoio do presidente americano, essa seria uma causa perdida

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SUPERAÇÃO
"Quando entrei na diplomacia, havia sanções contra homossexuais"

 

Primeiro diplomata a ser nomeado para o cargo de Enviado Especial para Direitos Humanos da população LGBTI, o americano Randy Berry é a nova aposta do presidente dos Estados Unidos para a política externa. Ainda que, no país, a decisão de regulamentar o casamento entre pessoas do mesmo sexo seja soberana de cada Estado, Barack Obama já foi a público defender a questão. Em fevereiro, decidiu que a defesa dos direitos dos gays seria também um assunto de política externa.

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"A forma como Caitlyn Jenner se apresentou ao mundo é extraordinária.
Mesmo mais velha, finalmente teve a coragem de dizer ‘essa sou eu’"

 

Para isso, recrutou Berry, então Cônsul Geral dos EUA em Amsterdã. Casado com outro homem e pai de dois filhos, o Enviado Especial trabalhou em países como Nepal, Egito e Uganda em 22 anos no serviço diplomático americano. “Nunca morei num lugar onde não havia gays”, diz. “Se há ou não aceitação, esse dado da realidade não muda.” Berry esteve no Brasil na semana passada para participar da Parada do Orgulho Gay de São Paulo e recebeu a reportagem de ISTOÉ antes de desfilar na Avenida Paulista. 

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"O presidente Obama tomou uma posição de liderança muito
forte na questão gay e isso é refletido em todo o governo"

 

ISTOÉ

 O senhor trabalhou em vários países. Nessa experiência, o que aprendeu sobre a forma como os homossexuais são tratados ao redor do mundo?

 
Randy Berry

  Há um longo caminho de conscientização para as pessoas entenderem que membros da comunidade LGBTI são como qualquer ser humano. Os governos têm a responsabilidade de oferecer proteção legal e permitir que todos os cidadãos participem do processo democrático. Isso também aumenta o nível de visibilidade para os gays em locais onde sua situação é muito difícil. Nunca morei num lugar onde não havia gays. Se há ou não uma aceitação, isso não muda o dado da realidade. 

 
ISTOÉ

 Num mundo onde os homossexuais são discriminados, seu desafio enquanto Enviado Especial é enorme. Por onde começar?

 
Randy Berry

 Eu sinto o peso da responsabilidade, mas não carrego o fardo sozinho. Tenho recebido uma quantidade extraordinária de apoio ao meu trabalho. Há muitos países que estão à nossa frente. Esse é um dos principais motivos da minha viagem à América Latina. Há mudanças notáveis ocorrendo não só no Brasil, mas em outros países da região, como Chile e Argentina, e estou interessado em aprender com eles. Quando fui nomeado para esse cargo, recebi milhares de e-mails. E nenhum deles foi negativo. 

 
ISTOÉ

 Qual é o senso de urgência que o presidente Barack Obama dá para os direitos LGBTI?

 
Randy Berry

 O mais legal de trabalhar com isso agora é que nossa política em direitos humanos para LGBTI é definida como alta prioridade. O presidente tomou uma posição de liderança muito forte nessa questão e isso é refletido em todo o governo. O secretário (de Estado, John) Kerry, como sua antecessora, a secretária (Hillary) Clinton, tem me dado um apoio extraordinário. Esse assunto está muito próximo ao coração do presidente. 

 
ISTOÉ

  Como tem sido sua luta particular contra a homofobia? O sr. sofre preconceito por ser gay?

 
Randy Berry

 Sou um indivíduo abençoado. Certamente qualquer gay passou por uma experiência negativa em algum momento de sua vida, mas a minha foi pouco afetada por isso. Há várias formas de discriminação que a homofobia pode ter. O que podemos fazer, enquanto abertamente gays, é decidir como isso afeta nossa vida. O que mais me preocupa é trabalhar com jovens e adolescentes. Nessa fase, gays ou heterossexuais, passamos por um momento de descobrir quem somos enquanto pessoa. Num jovem gay ou lésbica, entre seus 16 e 18 anos, é muito perturbador saber que ele não vê a possibilidade de esperança para o futuro. 

 
ISTOÉ

 Há muito preconceito na diplomacia global? 

 
Randy Berry

 Estamos no meio de um processo. Estou muito feliz por saber que existem muitos líderes sêniors no governo americano e em outros lugares que se sintam livres para ser quem são. Estou no serviço diplomático americano há 22 anos. Quando entrei, não poderia apontar nenhum diplomata proeminente e gay. Havia diplomatas gays? Claro. Mas não havia tanto espaço para as pessoas se sentirem confortáveis. Havia, pelo contrário, sanções contra pessoas abertamente gays.  No início dos anos 90, um diplomata podia ter seu certificado de segurança removido por ser gay. 

 
ISTOÉ

 O que a perda do certificado poderia significar na vida dele? 

 
Randy Berry

 Nesse ramo, se você perde a habilidade de ter o certificado, e está numa posição de confiança no governo, sua carreira acaba. Sou muito sortudo de ter entrado na diplomacia quando essa prática estava terminando. Há alguns anos, tivemos nosso primeiro gay assumido apontado como embaixador e isso abriu um espaço enorme. Só no governo americano temos seis embaixadores gays servindo atualmente. Esse é um número que só vai crescer. 

 
ISTOÉ

 O que desencadeou essa mudança?

 
Randy Berry

 Os jovens têm a mente mais aberta, são mais compreensivos e entendem o que a diversidade pode trazer para uma sociedade, uma empresa. As entidades prosperam quando abraçam a diversidade. Ao longo da história americana, o conceito de cidadão mudou. Quando nossa Constituição foi escrita, ela dizia que todo homem deveria ser tratado igualmente. No fim do século 18, isso significava homem. Não incluía mulher e certamente não incluía homens negros também. 

 
ISTOÉ

 E qual é o papel dos EUA nesse processo de mudança?

 
Randy Berry

 O que amo no meu país é nossa habilidade de revisitar certos assuntos e continuamente pensar em visões mais inclusivas. Levamos muitos anos para entender que pessoas de outras etnias deveriam ter os mesmos direitos de cidadania sob a lei. Precisamos de uma guerra civil para resolver isso. Em termos da participação feminina, a liderança de mulheres em governos e negócios levou mais tempo. Cada sociedade passa por sua própria transformação. 

 
ISTOÉ

 O que deve ser feito para que os gays sejam mais aceitos na sociedade?

 
Randy Berry

 Isso tem que vir de dentro da própria cultura. Não se muda nunca a cabeça das pessoas pela força. Elas só entendem o que é ser gay quando seu irmão é gay, seu filho é gay, sua tia, seu colega de trabalho ou uma amiga são gays. Esse é o aspecto mais importante para combater a homofobia. Quando as pessoas percebem que alguém por quem elas genuinamente se importam também tem essa parte de sua identidade, isso complica qualquer noção pré-concebida de que eles são diferentes de nós.

 
ISTOÉ

 E como foi com o sr.? Houve um momento em que precisou fazer uma revelação? 

 
Randy Berry

 Não. Acho que nunca tive uma conversa assim no ambiente de trabalho. Há um ponto na carreira em que o sujeito deixa de ir a eventos corporativos sozinho, para de desviar de perguntas sobre por que não é casado e não tem uma namorada, e começa a levar junto a pessoa que é importante para ele, e colocar fotos em sua mesa. Para qualquer gay, é muito complicado e, às vezes, assustador o processo de não apenas se assumir mas incluir outros nesse conhecimento. Para mim, foi um processo gradual e, na minha profissão, passei por situações incrivelmente positivas.

 
ISTOÉ

 Há duas semanas, o ex-atleta americano Bruce Jenner revelou sua identidade feminina e posou para a capa de uma revista como Caitlyn Jenner. Qual é o papel que sua exposição pública pode ter para outros transgêneros?

 
Randy Berry

 A forma como Caitlyn se apresentou ao mundo é extraordinária. Em quatro horas, ela ultrapassou a quantidade de 1 milhão de seguidores no Twitter e quebrou o recorde estabelecido pelo presidente Obama. Ela trouxe à tona um assunto que passa por muitos mal-entendidos. Os transgêneros têm um alto nível de hostilidade a superar. Adolescentes transgêneros são muito mais suscetíveis a abandonar a educação formal, o que reduz seu potencial de perceber quem eles podem se tornar.  Em muitos lugares, eles estão à margem da sociedade.

 
ISTOÉ

 Daí a contribuição que Caitlyn pode dar…

 
Randy Berry

 Mesmo mais velha, Caitlyn teve a coragem de dizer “essa sou eu”. Uau. Trata-se de uma ferramenta incrivelmente poderosa. É muito difícil quantificar o impacto disso. Acho que nunca saberemos. Refletindo sobre minha própria perspectiva, quando era jovem e procurei por modelos, muitas pessoas foram exemplos para mim e nem imaginam.

ISTOÉ

 No Brasil, uma das principais reivindicações da comunidade gay é a criminalização da homofobia. Tratar a homofobia pelo Código Penal tem algum efeito pedagógico?

 
Randy Berry

 Para se ter uma mudança cultural de longo prazo, é preciso diferentes níveis de engajamento. A legislação é importante quando certas atitudes cruzam a linha e se tornam ativamente nocivas. Em termos da lei de crimes de ódio, quando se vê discriminação e violência ativas contra gays, sim, eu acho que há uma sanção que os governos precisam tomar. Mas não é sobre prevenir as pessoas de expressarem suas crenças e opiniões. O direito de acreditar no que quiser não significa que se pode fazer o que quiser. É aí que entra o papel do Estado. 

 
ISTOÉ

  Os EUA criticam a Rússia por ser tão autoritária com as mulheres e os gays, mas, ao mesmo tempo, mantêm relações próximas com países como a Arábia Saudita, que faz pior. O sr. se sente constrangido com essa situação?

 
Randy Berry

 Nossa projeção de valores e o compartilhamento de como abraçamos a diversidade é consistente. No Brasil, há uma grande confluência de visões. A mensagem não muda quando falamos com outros países, mas, obviamente, a conversa será diferente na Arábia Saudita. A habilidade de realizar mudanças e a abordagem varia de país para país. Não acho que exista uma abordagem única que sirva para qualquer circunstância. 

 
ISTOÉ

 No ano que vem, haverá eleições presidenciais nos EUA. Se um candidato do Partido Republicano vencer, seu trabalho estará ameaçado?

 
Randy Berry

 Não. A questão que estou trabalhando, contra as piores formas de discriminação e a violência contra gays, não é muito controversa. Eu caracterizaria meu trabalho não como bipartidário, mas não-partidário. Trabalhar com direitos humanos não é uma questão política e não vejo uma mudança nesse sentido. Por causa da aproximação das eleições, as diferenças tendem a se destacar, mas realmente acredito que esse não estará entre os assuntos polarizadores nos EUA.