"Mesmo com um mandato da comunidade Fifa, eu não sinto que sou apoiado pelo mundo do futebol – os torcedores, os jogadores e os clubes. Portanto, decidi deixar o meu cargo.” Com essas palavras, o suíço Joseph Blatter, 79, mandachuva do esporte durante 17 anos, despediu-se da presidência da Federação Internacional de Futebol (Fifa) na terça-feira 2. Num discurso de cerca de um minuto e meio de fala pausada, expressões meticulosamente escolhidas e semblante cabisbaixo, o dirigente anunciou a decisão e saiu por uma porta lateral da sala azul celeste da sede da entidade, em Zurique, Suíça. Com a renúncia, Blatter procurava conter o tsunami de revelações iniciado na semana anterior que escancaravam o sistema de corrupção na alta cúpula da Fifa. Aconteceu justamente o contrário. Desde sua saída, uma série de denúncias vindas de vários países o atingiram diretamente – e o mundo da bola. Um dos vice-presidentes da federação, Jack Warner, por exemplo, chegou a ameaçar contar segredos do próprio chefe. “Eu vou dar informações sobre transações financeiras da Fifa, incluindo Blatter”, disse, em depoimento para a TV de seu país, Trinidad e Tobago, na quinta-feira 4. O afastamento do presidente da Fifa foi desencadeado quatro dias após sua eleição, quando seu braço-direito, o francês Jeróme Valcke, foi envolvido no escândalo de corrupção que na semana anterior levou sete cartolas à prisão. Com as denúncias deflagradas pela polícia federal americana, o FBI, subiu a pressão política contra Blatter, exercida por países europeus que desejam chefiar a entidade, e aumentou a ameaça financeira de patrocinadores, que ensaiavam suspender contratos por conta da nuvem de suspeitas que paira sobre os negócios da organização.

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Apesar da renúncia, na prática Blatter continua no comando da Fifa até que novas eleições sejam realizadas, entre dezembro e março de 2016. Um novo pleito não pode ser convocado imediatamente porque o estatuto impõe um intervalo de pelo menos quatro meses entre anúncio e votações. Mas a saída do suíço e as investigações do FBI, por um lado, deram partida a uma torrente de revelações de corrupção envolvendo países como a Irlanda (a entidade pagou para o país desistir da Copa de 2010), e o Egito (cartolas pediam US$ 7 milhões para aprovar candidatura do local ao mundial). Por outro, abriram a disputa entre os candidatos a novo ocupante do trono máximo do esporte.

O curioso é que, apenas uma semana antes, Blatter estava a dois dias de uma eleição garantida devido ao apoio maciço das confederações da Ásia e da África, que ele sempre mimou com repasses financeiros e com a escolha das primeiras Copas do Mundo nesses continentes. Foi quando os Estados Unidos pediram a prisão de sete executivos da Fifa, incluindo o brasileiro José Maria Marin, acusando-os de usar solo americano para operar  um vasto esquema de corrupção em contratos de futebol. Apesar de enfraquecido pelos malfeitos ocorridos em sua administração, na sexta-feira 29 o presidente da entidade foi reeleito para mais um mandato – o quinto em sequência. Já na segunda veio a bomba: o jornal “The New York Times” noticiou que o homem de confiança de Blatter e número dois da Fifa, Jérôme Valcke, movimentou US$ 10 milhões em dinheiro sujo de propinas. 

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O escândalo de corrupção foi o motivo fundamental para a renúncia do “capo” do futebol, mas não foi o único. Há anos ele sofre pressão da oposição encabeçada pela Uefa, a confederação europeia. Foi nos últimos dias, porém, que esses antagonistas ganharam força. Nas eleições da sexta-feira apoiaram o candidato único de oposição, príncipe Ali bin al-Hussein, da Jordânia. Foram países da Europa que deram boa parte dos 73 votos que recebeu o monarca e, com isso, possibilitaram o segundo turno. Como o suíço ainda levava 133, o príncipe desistiu. O fracasso eleitoral veio por uma margem menor do que se imaginava, e a Uefa também enfrentava Blatter em outras frentes. A principal foi a ameaça de boicote à Copa, ao Mundial de Clubes e ao futebol das Olimpíadas, liderada pela federação inglesa e por dirigentes dinamarqueses. O movimento foi visto com ceticismo, mas os europeus buscavam com o blefe se apoderar da Fifa, que escapou de suas mãos nos anos 1970, com a ascensão de João Havelange.

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Cria do brasileiro, Blatter conquistou espaço com a estratégia de agradar a periferia do futebol (leia quadro), mas seus desmandos deixaram o cenário pronto para outra força política conquistar o poder. A maior estrela é Michel Platini, ex-jogador francês e presidente da Uefa. Favorito no pleito que decidirá o próximo comandante da entidade, ele ainda enfrenta, porém, sérios problemas. Platini é alvo de suspeitas em escândalos de compra de votos na Copa da França (1998) e no Qatar (2022), não conquistou o apoio dos outros continentes e encara rebeliões em sua própria base – Espanha e França são alinhadas com o rival. Além disso, perdeu o argumento moral ao não concorrer ao cargo por medo de perder. “O maior derrotado nas eleições de sexta-feira foi o Platini, não o jordaniano. Ao longo de quatro anos ele sempre disse que poderia se candidatar contra Blatter”, afirma o escritor português Luís Aguilar, autor de um livro sobre os negócios obscuros da Fifa. De quebra, saiu fortalecido o príncipe Ali, que aparece como número dois na corrida. Também é muito provável que o próprio Blatter renove sua influência indicando um sucessor, já que seus apoiadores africanos e asiáticos ainda somam 100 dos 209 votos possíveis. Outros nomes apoiados pelos EUA e pela Grã-Bretanha (ambos perderam disputas para sediar Copas em votações suspeitas) e até o brasileiro Zico demonstraram interesse.

Outro motivo para o afastamento de Blatter foi a insatisfação dos patrocinadores da Fifa. Com a eclosão das denúncias há quinze dias, as principais companhias soltaram comunicados públicos exigindo mudanças no comando e na estrutura da organização. Uma delas, a Sony, desistiu do patrocínio após revelações ocorridas no fim do ano passado. Hoje, os principais parceiros pagam até US$ 50 milhões anuais (R$ 150 milhões) segundo a Forbes e incluem empresas como Coca-Cola, Adidas, Visa e Hyundai. A fabricante de refrigerantes disse que a saída foi “um passo positivo para o bem do esporte, do futebol e dos seus fãs.” Para a marca de cartões, “foi uma primeira etapa importante para reconstruir a confiança pública”. Professor de sociologia do esporte na Universo, Mauricio Murad considera que os patrocinadores estavam aborrecidos e já reclamavam e pressionavam nos bastidores. “Ninguém quer ter seu nome associado a crimes.”

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As renúncia já pode ser sentida no Brasil. O presidente da Confederação Brasileira de Futebol (CBF), Marco Polo Del Nero, que saiu às pressas da Suíça depois da prisão dos sete dirigentes, se reuniu com chefias das federações estaduais e marcou reunião com clubes para costurar acordo que o mantenha no poder. Por enquanto, conseguiu o apoio da maioria dos estados, mas não tem boas relações na confederação sul-americana, a Conmebol, porque o País fez campanha para Blatter contra o príncipe Ali nas eleições, indo contra o posicionamento do restante do continente. Enfrenta também a oposição de ídolos como o senador Romário (PSB-RJ), que busca emplacar uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) no Congresso para apurar condutas da CBF. “A renúncia de Blatter representa o início de uma nova era para o futebol mundial. Todos os gestores corruptos das confederações, mundo afora, sentirão sua queda como um tsunami”, afirmou.

No apagar das luzes, Blatter prometeu realizar reformas pedidas pela comunidade futebolística há anos. A principal delas é colocar um limite para os mandatos dos presidentes da entidade e membros do comitê executivo. “Ele só está falando nisso agora porque se afastou. Na época em que estava lá não queria abandonar o poder”, diz o português Luís Aguilar. Mudanças que impeçam mandatários de se cristalizar nos postos são bem-vindas, mas não bastam. O principal problema é a disparidade de forças na escolha dos líderes da organização. De acordo com as regras atuais, cada uma das 209 federações possui um voto. Ou seja, o peso de decisão de seleções campeãs mundiais como Alemanha e Itália é o mesmo de locais como Montserrat, uma ilha no Caribe com menos de 5 mil habitantes que nem sequer é um país. “Há votos muito fáceis de comprar”, afirma Aguilar.

A queda de Blatter abre ainda uma caixa de Pandora de casos de corrupção, no que o FBI chamou de “Copa do Mundo da fraude”. Foram relatados novos escândalos envolvendo possíveis propinas recebidas pelo ex-presidente da CBF Ricardo Teixeira durante a Copa do Brasil, uma investigação sobre Neymar e seu pai por sonegação fiscal pela Receita Federal por conta da turbulenta tranferência para Barcelona, e a prisão de cartolas sul-americanos atolados em desvios durante o torneio Libertadores da América. Isso só até o fechamento desta edição.

Fotos: Ennio Leanza/Keystone/AP Photo/Glow Images; WARNER TV/AFP PHOTO; NELSON ALMEIDA/AFP PHOTO 


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