Ela era pequena, franzina, desbocada. De origem pobre e temperamento irascível, Edith Piaf se tornou símbolo da canção francesa sem nunca deixar as gírias aprendidas nas ruas e bordéis onde cresceu. Abandonada pelo pai, acrobata, e pela mãe, também cantora, e negligenciada pela avó, encontrou acolhimento entre as prostitutas que atendiam em um estabelecimento onde a mãe cantava em Bernay, na Normandia. Edith Giovanna Gassion conheceu desde cedo o valor dos amigos, que carregou e que a carregaram durante uma vida tumultuada e breve, marcada por casos tórridos, saúde limítrofe e o vício em morfina. Dois dos mais próximos, o casal Danielle e Marc Bonel mantem até hoje a própria casa como uma espécie de memorial da amiga morta em 1963.

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“A reforma que fizemos no fundo era para recebê-la depois da última internação. Mas ela morreu sem saber”, contou Danielle a Jean-Paul Mazillier, um dos autores de “Piaf: de Môme a Edith”, que chega ao Brasil pela editora Martins Fontes no ano em que o “Pequeno Pardal” completaria um século de vida. Na casa do acordeonista e de sua mulher dançarina, o pesquisador descobriu um baú esquecido. “Uma caixa de madeira, repleta de chaves”, escreve Mazillier.

Descontadas as reverências de admirador, o compêndio traz preciosidades. Letras e partituras de canções que Piaf nunca chegou a gravar, cartas de conteúdo muito pessoal trocadas com gente como Federico Fellini, Jean Cocteau e Yves Montand, um dos amantes que ajudou a ascender na carreira. Muitos anos depois da morte da artista, Montand, a propósito, negou ser uma “criação” de Môme: “Ela não me criou, ela me ajudou e sobretudo, me amou, me apoiou e me magoou com tanta sinceridade, com tanta graça, que precisei de muitos anos para me recuperar”.

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A vontade de dourar a passagem de Piaf, por sorte do leitor, não foi suficiente para deixar de fora contradições básicas de sua personalidade. No auge da fama, a pequena parisiense sustentava a mãe por meio de uma secretária. Dizia evitar qualquer contato porque considerava imperdoável abandonar um filho. Ali, no baú, os Bonel guardavam retratos desconhecidos de Marcelle, a filha que ela própria nunca cuidou. A menina, que vivia com o pai, o entregador Louis Dupont, morreu de miningite com dois anos de idade num momento em que Môme cantava em um café.

Retratos inéditos de seus últimos dias de vida, cartazes raríssimos de discos e shows promovidos por gravadoras como a Polydor e a Columbia, além de discos de vinil de primeira edição, foram reproduzidos no volume preparado por três fãs, que dedicam parte de suas vidas a encontrar vestígios da cantora que internacionalizou “La Vie em Rose”. Mas mais comovente – pois tudo em torno de Edith Piaf concorre em comoção – são os diários, anotações em páginas de caderno escolar de uma francesa que quase nada teve de educação formal, mas que se dedicou em cada linha anotada a dominar sua língua, para poder cantar.

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fotos: Divulgação