Um enorme toldo branco esconde o palco da casa de espetáculos Tom Brasil, em São Paulo, onde uma nova versão da peça Gota d’água, de Chico Buarque e Paulo Pontes, entra em cartaz na sexta-feira 14. Bem no centro da lona, vê-se o desenho do célebre plano piloto de Brasília concebido por Lúcio Costa e Oscar Niemeyer. Como é ligeiramente estilizado, só aos poucos o espectador vai percebendo que sob o famoso contorno – e se adequando perfeitamente a ele – está esboçada a figura do mosquito da dengue. Assim que o toldo-cortina levanta, surge no cenário um conjunto habitacional construído com 28 leitos hospitalares, tendo ao fundo uma réplica da fachada do Palácio da Alvorada. Ainda sem o público que eles pretendem ver lotar o Tom Brasil, o diretor Gabriel Villela e o cenógrafo J. C. Serroni sorriem satisfeitos. “É uma metáfora cênica”, define Villela, que com esta montagem se despede do cargo de diretor artístico do TBC paulistano, sem cumprir o final da prometida “Trilogia Chico Buarque”, que deveria terminar com a encenação de Calabar. No ano passado, ele apresentou a Ópera do malandro e, num projeto à parte, o infantil Os saltimbancos, também de Chico Buarque.

Tragédia – Escrita em 1975, Gota d’água é baseada num projeto do dramaturgo Oduvaldo Viana Filho, que se inspirou na tragédia grega Medéia, de Eurípedes. Na encenação de Gianni Ratto, a história de Joana, a mulher abandonada pelo marido que, para se vingar dele, mata os filhos, foi ambientada no conjunto habitacional carioca Vila do Meio-Dia. Jasão, o ex-marido, é um compositor popular, e seu novo sogro, Creonte, um empresário inescrupuloso. O roteiro e os mais de quatro mil versos escritos por Chico Buarque e Paulo Pontes foram preservados na atual montagem. Mas agora Villela – a exemplo de seu colega Antunes Filho, em cartaz em São Paulo com uma outra versão de Medéia – quis retomar o caráter da tragédia de Eurípedes. À sua maneira, evidentemente. Joana, por exemplo, se transformou numa macumbeira. “É o hálito grego misturado ao melodrama brasileiro”, explica ele, que encheu o Palácio da Alvorada de entidades do candomblé.

Força cênica – Para viver Medéia/Joana – papel de Bibi Ferreira na primeira montagem –, o diretor chamou uma velha amiga sua, Cleide Queiroz, atriz negra de inquestionável força cênica e especializada em musicais. A seu lado está Jorge Emil, grata revelação do teatro mineiro, no papel de Jasão. Ambos são atores convidados da Cia. de Repertório Musical do TBC, que encenou a Ópera do malandro e integra a atual versão. A exemplo da primeira peça da trilogia, os figurinos de Gota d’água também exercem papel preponderante no império do cinismo imaginado por Villela. Em parceria com Leopoldo Pacheco, ele misturou roupas em frangalhos a peças de primeira linha de grifes como Giorgio Armani, Dolce & Gabbana e Donna Karan “autênticos”. Para completar, máscaras gregas compradas na Itália dão um toque fantasmagórico às interpretações. E, para evidenciar a dissolução do casamento, os personagens masculinos usam grinaldas e meias-calças como gorros.

Gabriel Villela, que deixa o cargo de diretor artístico do TBC alegando não ter se dado bem com o lado burocrático da função, prepara-se para uma viagem à Amazônia, onde pretende montar ao ar livre o clássico Sonho de uma noite de verão, de William Shakespeare. Depois da empreitada nacional, ele quer correr mundo com o mesmo espetáculo, que será sempre realizado sob uma oca, nas águas de algum rio. Desta vez, segundo ele, será uma metáfora anfíbia.