Nikolay Lebedovich passou boa parte da terça-feira 10 revirando os entulhos do que há poucas semanas havia sido sua casa. Após quase dois meses refugiado com parentes em um vilarejo próximo da fronteira com a Rússia, ele aproveitou o raro dia de sol forte e temperatura primaveril neste fim de inverno no leste da Ucrânia para ver o que havia sobrado intacto entre os bens que juntou durante seus 39 anos de vida. Não achou quase nada. Na casa ficaram apenas algumas paredes de pé. Seu carro, um antigo Lada dos tempos soviéticos, se transformou em um monte de ferro retorcido. Da moto que usava para pequenas viagens até a mina de carvão onde trabalhava, restaram apenas pequenas partes, espalhadas ao lado do automóvel azul. Tudo mais estava destruído. Não sobraram eletrodomésticos, móveis, fotos, roupas. Só lembranças. Assim como Nikolay, praticamente todos os moradores desta pequena vila de cerca de mil habitantes chamada de Nikishino fugiram quando os combates entre as forças separatistas da República Popular de Donetsk e o exército ucraniano se intensificaram no início do ano. Assim como ele, quase toda a população local teve suas casas destruídas pelas ferozes batalhas que marcaram a ofensiva separatista para a tomada de Debaltseve, um importante centro ferroviário no coração desta região da Ucrânia conhecida como Donbass.

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DESTRUIÇÃO
Nikolay (segundo da esquerda para a direita) observa o cenário de
devastação em seu vilarejo após a batalha de Debaltseve

A Ucrânia está mergulhada em um grande pesadelo e traz de volta cenas que os europeus não imaginavam reviver. Caminhar pelas ruas vazias de Nikishino é como entrar em uma espécie de cenário da Segunda Guerra Mundial. Por todos os lados há cartuchos deflagrados por fuzis, bombas que não explodiram encravadas no solo, grandes buracos feitos por morteiros, restos de comidas enlatadas que os soldados não conseguiram terminar, capacetes amassados e dezenas de lançadores de granadas largados pelo chão. No meio da destruição, gatos e cachorros que foram abandonados por seus donos vagam por comida. Quem esteve em Nikishino nos últimos dias preocupou-se apenas em recolher os corpos humanos. Os cadáveres dos animais domésticos permanecem nas ruas e no quintal das casas, fazendo lembrar que a morte é a cara da guerra.

Como nos piores pesadelos da Segunda Guerra Mundial, há muita gente que perdeu caminhando sem rumo pelas ruas, tentando retornar a um lugar que não reconhece mais. Mesmo com a frente de combate a apenas algumas dezenas de quilômetros da vila de Nikishiro, os moradores decidem que é hora de retomar a vida. O sol que derreteu a neve espessa nos últimos dias parece fazer com que os ucranianos acreditem que a primavera que se aproxima trará de volta a paz. “Se o tempo continuar assim, vou começar a reconstrução da minha casa logo, para que até o inverno já esteja pronta”, diz Nikolai. “Não vou embora daqui, esta é minha terra, esta é minha casa.”

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Histórias de horror são ouvidas por onde quer que se ande, como se os fantasmas da Segunda Guerra Mundial voltassem a assombrar a Europa. A pouco mais de uma dezena de quilômetros dali, três tanques destruídos por foguetes disparados por lançadores de mão anunciam que Debaltseve se aproxima. A cidade de 25 mil habitantes foi o palco da maior e mais feroz batalha desta guerra que já matou mais de seis mil pessoas apenas em 2014. Formada em sua grande parte por blocos de apartamentos tipicamente soviéticos, Debaltseve não está em ruínas como Nikishino. Com uma população tão grande – e com boa parte dela recusando-se a partir – um rosário de tragédias marcou para sempre o lugar.

Alexei Omelayev era criança quando os alemães chegaram na região em 1941, na grande ofensiva da Operação Barbarossa. A chegada do exército nazista e a contra-ofensiva organizada por Joseph Stalin em 1943 voltaram à memória de Alexei nos mais de 40 dias em que ele viveu, com outras 50 pessoas, em um escuro, frio e apertado porão de um edifício de seis andares, entre meados de janeiro e o fim de fevereiro em Debaltseve. “Foi um período duro ficar naquele porão, sem luz, com pouca comida e com frio, mas ao menos sobrevivemos”, conta ele, deixando à mostra os dentes de metal que ocupam o lugar do que um dia foram os incisivos e caninos superiores. “Nosso edifício recebeu ao menos 12 disparos de artilharia diretamente e outras 20 bombas caíram aqui em volta. Pelo que me lembro, os alemão tinham pontaria melhor”, diz Alexei, ao lado do pequeno Bogdan Mikhaylov, um jovem de 12 anos que sonhava em ser soldado das forças especiais. “Tive muito medo, foi muito assustador, nunca mais quero passar por isso em minha vida, não quero matar os outros e nem morrer”, diz ele, que desistiu do sonho de um dia vestir uma farda.

Alexei e as cerca de cinco dezenas de pessoas que dividiram o apertado porão tiveram sorte. Apesar de não haver uma contagem oficial, a estimativa é que algumas dezenas de civis morreram na batalha de Debaltseve. Apenas entre soldados ucranianos que tentavam defender a cidade dos separatistas pró-Rússia acredita-se que cerca de 200 tenham perecido nos últimos dias de combates. Muitos desses corpos ficaram para trás na atabalhoada retirada do fim de fevereiro e, de acordo com moradores que permaneceram na cidade, serviram de alimento para as matilhas de cães que ainda perambulam pelas ruas destruídas desta cidade estrategicamente localizada entre Donetsk e Luhansk, as duas principais metrópoles controladas pelos separatistas.

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A menos de dois meses do início das comemorações oficiais dos 70 anos do fim da Segunda Guerra, a Europa teme que histórias como as de Alexei ou de Nikolai passem a se transformar em uma incômoda rotina. O cessar-fogo intermediado por Angela Merkel e François Hollande parece cada vez mais próximo do fim. No entorno do Aeroporto de Donetsk, separatistas e as forças armadas ucranianas permanecem em conflito constante. Nos últimos dias, mesmo no centro desta moderna cidade de pouco mais de um milhão de habitantes, o som da artilharia pode ser ouvido, tanto durante a noite quanto durante o dia. “É como se o passado tivesse voltado para nos mostrar o que nossos pais e avós sofreram”, diz Nadezhda Denshik, uma vendedora de seguros que, como quase todos em Debaltseve, perdeu o emprego depois do início da guerra. Na quarta-feira 11, Nadezhda aproveitou o dia de sol para limpar o jardim em frente à sua casa. Com uma tesoura de jardinagem, ela retirava as ervas daninhas que sobreviveram ao inverno e pedaços de estilhaços das bombas que caíram a poucos metros de sua casa. “Vou preparar a terra para plantar tulipas, tomates e pepinos”, dizia ela. “Como nossos pais e avós fizeram, precisamos continuar a viver.”