Que os estudantes negros são raridade nas universidades brasileiras, já se sabe. Mas uma pesquisa do Ministério da Educação deu contornos mais claros a esse subproduto do racismo nacional: eles não passam de 2,2% dos universitários do País. Tão poucos que, nos últimos dias, o ministro Paulo Renato Souza elegeu o assunto como prioridade. Para combater o problema, anunciou que vai investir em uma idéia simples, barata e eficaz, que não saiu da cabeça de nenhum técnico em pedagogia ou político demagogo. São os cursos pré-vestibulares comunitários, uma iniciativa nascida em 1993 no município paupérrimo e populoso de São João de Meriti, na Baixada Fluminense. De lá para cá, os núcleos se espalharam por todo o Brasil – já passam de mil – e empurraram para a universidade mais de 15 mil pessoas, brancos e negros carentes, que antes só entrariam nas salas de aula como faxineiro ou pintor de paredes. O principal formulador dessa revolução silenciosa é o frei franciscano David Raimundo dos Santos, coordenador da ONG Educafro. Citado várias vezes por Paulo Renato e pelo ministro da Justiça, José Gregori, ele se diz alegre, mas também temeroso. “O governo está de parabéns por incentivar os pré-vestibulares comunitários para negros. Mas se essa intenção é honesta, não deve intervir nos cursos já existentes, pois seria cooptação política.”

A receita do sucesso não tem nada de complicada. Os cursos pré-vestibulares comunitários têm professores voluntários, quase sempre moradores de regiões carentes que conseguiram concluir o curso superior. O aprendizado acontece em locais cedidos pela comunidade e os coordenadores dos cursos também são voluntários. A contribuição dos alunos não pode ultrapassar 10% do salário-mínimo. “Desde o início, nosso objetivo era criar um modelo que pudesse ser repetido com facilidade em outros grupos e outros lugares”, explica o frei. Os pré-vestibulares comunitários recusam qualquer oferta de ajuda externa, venha de uma empresa patrocinadora ou de uma parceria governamental. “Queremos manter nossa autonomia, a comunidade deve contar apenas com ela mesma. Se perdermos isso, todo o projeto se perde.” O princípio faz com que David descarte um trabalho conjunto com o MEC – ajuda disputada a tapa por grupos da sociedade civil.

No lugar desse trabalho conjunto, ele sugere ao governo um outro tipo de atuação. “O ministro pode criar pré-vestibulares para negros dentro das universidades federais. As salas de aula estão lá, há professores formados com folga na carga horária, há milhares de alunos que se formam e podem ser professores voluntários. Assim, os estudantes ricos que ocupam as universidades públicas devolveriam à sociedade o ensino gratuito que tiveram”, imagina. A preocupação é que o governo não transfira para os cidadãos uma responsabilidade que é dele. Mas David acredita que essas providências ainda seriam insuficientes para reverter o quadro da discriminação no ensino superior nacional. Ele defende o estabelecimento de vagas e bolsas para os estudantes negros nas universidades. “Se o governo quiser mudar a situação agora, deve criar as cotas. Se ficar limitado a implantar cursos pré-vestibulares para negros, vai ter resultados significativos apenas nos próximos 20 anos”, avalia. O frei não acha que essa providência seja a ideal, mas sim a mais eficaz no momento.

Não seriam essas ações uma espécie de racismo às avessas, um privilégio para os negros? Para a pergunta, que frequentemente cruza o seu caminho, David tem resposta na ponta da língua. “O drama do negro na sociedade brasileira diz respeito a todos nós. Os demais pobres que não são afro-descendentes devem observar que há vários tipos de discriminações oficiais e o sucesso dos negros poderá potencializar as lutas de outros grupos marginalizados”, afirma. Enquanto as cotas não passam de uma idéia, o frei briga para que as universidades públicas e particulares isentem de taxas e mensalidades os alunos que vêm da rede pública e dos cursos comunitários.

Revolução – Atuar em várias frentes é uma característica desse mineiro de 49 anos. Além de coordenar os cursos comunitários e brigar pela isenção de taxas, ele trava uma discussão com as autoridades de educação do Rio de Janeiro por causa da falta de várias disciplinas no currículo da rede pública. “Eles criam um currículo fictício, lançam notas falsas e consideram os estudantes formados”, denuncia. Suas informações mobilizaram a Assembléia Legislativa, que investiga o assunto. Outro desafio é atenuar a discriminação dentro da própria Igreja Católica. David introduziu, nas suas missas celebradas na Baixada Fluminense, vestimentas, instrumentos e até danças africanas. Filho de mãe branca e pai negro, durante muitos anos o frei teve vergonha da cor de sua pele. Foi um padre franciscano, encarregado de sua formação no seminário, que o fez mudar de atitude. De vítima do auto-racismo, se transformou em pivô de uma das principais experiências para atenuar a discriminação aos negros brasileiros. “Espero que tudo não seja mero marketing eleitoral. Se o governo levar a sério essa proposta, teremos uma das revoluções de consciência mais bonitas do mundo”, afirma.

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