Faz parte da tradição cartorial brasileira a crença dos legisladores de que decretos e leis, pelo simples fato de estarem escritos, têm força suficiente de regrarem o comportamento social dos cidadãos. Pura ilusão que vem se repetindo, por exemplo, nas tentativas de se oferecer nos códigos penais maior proteção às mulheres contra a violência masculina – isso desde os tempos do Brasil colônia até os nossos dias. Está agora no Congresso, pautado para ser votado em 2015, o novo Código Penal. Novamente dá-se destaque à tutela da segurança da mulher por parte do Estado, novamente incorre-se em erros. O primeiro deles é o de decretar-se tal segurança, ou seja, pouco se aprendeu com a lei Maria da Penha. Os casos de agressões a mulheres aumentaram no País após a sua promulgação, como mostram as estatísticas oficiais, e nem poderia ser diferente: leis, somente porque estão no papel, não mudam temperamento nem personalidade de homens agressivos.

O segundo equívoco é a proposta de inclusão no novo Código Penal do “crime de feminicídio”. À primeira vista ele parece salvaguardar a mulher, mas na verdade acaba criando uma espécie de discriminação pelo avesso. E não é a primeira vez que isso acontece. Quando ainda era colônia, o Brasil submetia-se às Ordenações Filipinas e elas previam que o marido que flagrasse a mulher em adultério poderia matar o rival, desde que esse “marido não fosse peão” e a “adúltera não estivesse se relacionando” extraconjugalmente “com um fidalgo”. Fácil entender a discriminação indireta: a concubina de fidalgo era tida como “menos adúltera” do que aquela que traísse o marido com homem sem nobreza. Depois vieram os códigos de 1830, 1890 e 1940, todos cuidando da violência contra a mulher no âmbito conjugal e familiar. Restrito assim às fronteiras domésticas, o assassinato cometido pelo esposo traído ganhou o eufemismo de “legítima defesa da honra” e quase sempre o criminoso saía absolvido do Tribunal do Júri. Demorou-se muito a entender que a honra é um patrimônio subjetivo de cada pessoa, que ninguém suja a honra de ninguém porque ela não é transferível de um indivíduo para outro. Agora, com o projeto do feminicídio, vem o preconceito pelo avesso – é como se estivéssemos criando uma outra espécie de ser humano dentro da própria espécie humana: a mulher, não mais abrangida pelo homicídio como são todas as pessoas assassinadas no planeta, mas, sim, protegida pelo feminicídio se o crime ocorrer em seu lar. E já que ele está definido como “crime qualificado”, cabe a seguinte questão aos senadores e deputados: se o marido matar a mulher a quilômetros de distância de sua casa, então o ato volta a ser homicídio (e sujeito à já existente regulação penal) porque está fora e longe do ambiente familiar?

Finalmente, tem-se que o feminicídio é inconstitucional. O Estado de Direito pressupõe que “a lei é igual para todos”, e tal isonomia não se dá apenas na aplicação, mas também na elaboração da lei. Se a violência praticada contra a mulher no campo doméstico é automaticamente “crime qualificado” implicando condenação mais dura, também automaticamente tem de ser “qualificado” o homicídio cometido dentro de casa por uma esposa contra o seu marido. O projeto do novo código, no entanto, esqueceu-se disso. E se esqueceu, ainda, de que já existem qualificadoras como “meio cruel”, “motivo fútil” e “impossibilidade de defesa da vítima” às quais a qualificadora do feminicídio irá inevitavelmente se sobrepor – e processualmente uma ou outra ou ambas terão de ser anuladas. É claro que há séculos é preciso inibir a violência masculina contra a mulher, mas não chegaremos a lugar algum caminhando fora da Constituição do País.

Antonio Carlos Prado é editor executivo da revista ISTOÉ