Quando as tropas da guerrilha comunista do Khmer Vermelho entraram vitoriosas em Phnom Penh, capital do Camboja, na manhã de 17 de abril de 1975, a população saiu às ruas para comemorar. Parecia ser o fim de cinco anos de sangrenta guerra civil num país que fora tragado pelo conflito do vizinho Vietnã. Em vez de festejos, contudo, os cambojanos começavam a viver um pesadelo muito mais sinistro. No mesmo dia, os novos donos do poder decretaram o “ano zero” da revolução, ordenando a evacuação dos habitantes das cidades para o campo e dando início a um dos maiores genocídios da história, que em três anos e meio eliminou, através de execuções, torturas e privações, quase dois milhões de cambojanos – um quarto da população. “Para o país que estamos construindo, basta um milhão de revolucionários. Não precisamos do resto. Preferimos abater dez amigos a conservar um inimigo”, rezava a cartilha do Khmer, liderado por Pol Pot, o recluso “irmão número um”. A tirania só foi varrida pelos tanques vietnamitas em 1979. Anos depois, Pol Pot seria detido pelos seus camaradas no exílio na selva cambojana. Morreu supostamente de ataque cardíaco em 1998. Agora, finalmente, seus herdeiros podem sentar no banco dos réus. Na terça-feira 7, o Conselho Constitucional do Camboja aprovou um projeto de lei que permite o julgamento dos ex-líderes do Khmer por “crimes contra a humanidade”. A criação do tribunal é o resultado de um acordo assinado no ano passado entre o Camboja e a ONU.

Até agora, apenas dois expoentes do Khmer estão atrás das grades. Um deles é o ex-general Ta Mok, o “carniceiro”, preso desde 1999. O outro é Kang Kek leu, ex-professor de arte conhecido pelo codinome “Duch”, que chefiou um dos mais famosos centros de terror político do regime polpotista, o S-21, instalado no antigo colégio católico de Toul Sleng, em Phnom Penh. Lá, foram massacradas pelo menos 16 mil pessoas. No dia em que foi anunciada a criação do tribunal, Duch afirmou que estava disposto a testemunhar e dar o nome dos responsáveis pelas matanças.

O “irmão número dois”, o ex-chanceler Ieng Sary, julgado à revelia e condenado por genocídio em 1979, foi anistiado em 1996 pelo rei Norodom Sihanouk. Isso porque Sary rompeu com Pol Pot e entregou parte das tropas do Khmer. A ONU já afirmou que nenhuma anistia poderá proteger quem quer que seja de ser processado pelo tribunal especial, mas o primeiro-ministro cambojano, Hu Sen – ele mesmo um ex-integrante do Khmer Vermelho –, advertiu que um processo contra Ieng Sary pode trazer de volta a guerra civil ao país. Outro prócer da tirania polpotista, o ex-chefe de Estado Khieu Samphan, retornou ao Camboja em 1991, mas se embrenhou na selva depois de quase ter sido linchado por populares. Acusado de traição por Pol Pot em 1997, Samphan prendeu o antigo líder e se tornou chefe do Khmer. Vivendo em Pailin, antigo QG do Khmer na selva, ele diz que não tinha conhecimento do genocídio praticado nos anos 70.