A guerra comercial do Brasil com o Hemisfério Norte não se resume à vaca louca: já estamos enfrentando na OMC outra batalha comercial, muito mais séria. Por muito tempo, apoiando-se na Convenção de Paris de 1883, o Brasil recusou-se a reconhecer patentes estrangeiras de medicamentos, permitindo a qualquer empresa nacional produzir medicamentos genéricos baratos similares aos patenteados no Exterior sem pagar royalties. O governo Fernando Henrique Cardoso, porém, cedeu às pressões dos EUA e da OMC e levou o Congresso a aprovar, em maio de 1996, uma lei reconhecendo tais patentes, mas com algumas salvaguardas: o titular de patente farmacêutica que não fabrique o produto patenteado no Brasil em três anos ou que abuse do seu poder de mercado fica obrigado a licenciar seu produto a concorrentes que desejem fazê-lo. Se o titular comprovar não ser economicamente viável fabricar no Brasil, é obrigado a permitir que terceiros importem produtos vendidos pelo próprio titular em outros países.

Os EUA entraram com um processo na OMC contra essas restrições ao monopólio dos detentores de patentes, alegando que o Acordo sobre Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio (em inglês, TRIPS) não permite discriminação entre importação e produção local.

Por enquanto, os laboratórios transnacionais – que alegando altos custos com desenvolvimento insistem no direito de não produzir localmente e de não dar explicações de seus custos e seus lucros às autoridades – ainda não sofreram prejuízos concretos com as salvaguardas. Mas nosso governo já ameaça usá-las. “A preocupação é com os preços, que são muito elevados. Apenas dois medicamentos importados consomem um terço do que o governo gasta com a compra do coquetel para o tratamento da Aids”, diz o ministro da Saúde, José Serra.

O ministro já encomendou a pesquisa para a produção desses dois medicamentos, o Efavirenz (da Merck Sharp & Dohme) e o Nelfinavir (da Roche), a laboratórios oficiais – a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e o Instituto de Tecnologia em Fármacos (Far-Manguinhos). Até o final de junho, eles deverão dominar o processo de fabricação dos medicamentos e o ministro pretende decidir se usará o mecanismo do licenciamento compulsório. Há espaço para acordo, se os laboratórios concordarem em reduzir seus preços. O Ministério também ofereceu à Merck a opção de ceder a patente do Efavirenz ao Far-Manguinhos em troca do pagamento de royalties e da manutenção dos direitos sobre a patente em relação aos demais fabricantes, que continuariam proibidos de fabricar o produto. A transnacional ainda não respondeu.

“A indústria farmacêutica parece estar tentando se antecipar. Quer saber se as salvaguardas resistirão”, explica o presidente do Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI), José Graça Aranha. Para ele, a lei brasileira é moderna e inovadora e não contraria acordos internacionais. “O produto importado pode ser vendido no País, com algumas salvaguardas. Não há discriminação. Aparentemente, o grande temor da indústria farmacêutica é que este tipo de salvaguarda estabelecida na legislação brasileira seja adotado em outros países”, acrescenta.

Salvaguardas também existem nas leis de países europeus como Holanda e Suécia. Mas grandes países consumidores de remédios do Terceiro Mundo são outra história. “Vocês são um mau exemplo para o resto do mundo”, chegou a dizer um diplomata americano no ano passado. Os laboratórios multinacionais afirmam que o risco de perder a exclusividade de exploração de uma fórmula depois de três anos vai atrapalhar planos de investimento e lançamento de novos medicamentos no Brasil. “A lei não tem amparo nas normas internacionais. Além disso, contraria o bom senso. Os laboratórios concentram a produção e exportam por uma questão de economia de escala”, diz Flávio Vomitag, vice-presidente executivo da Associação da Indústria Farmacêutica de Pesquisa em Medicamentos (Interfarma), que reúne as grandes multinacionais do setor.