Correndo desengonçado pelos corredores encerados do moderno Hospital Materno Infantil de Brasília, Maurício comemora uma vitória: acaba de conquistar o direito a um pirulito por não ter chorado na consulta com o médico. Filho único da cabeleireira Simone Sales e de Wilson, um criador de avestruzes, Maurício já se acostumou à rotina imposta pelos adultos: homens de branco receitando remédios e a “tia” ensinando as letras. Os pais, que só fizeram o primeiro grau, acham o estudo fundamental para o futuro do filho. Aos três anos, ele adora ir à pré-escola e já entendeu que para crescer forte deve continuar visitando o homem de estetoscópio no peito. Essa realidade não faz parte da vida de Fabinho, do remoto município de Batalha, em Alagoas, mirrado para os seus quase seis anos. A maior parte do tempo, ele ajuda a mãe a cuidar dos outros cinco irmãos – José Cícero, Manoel, Maria da Penha, Ana Cristina e Diego. Analfabetos e sem emprego, Maria Ivanilde e Donizete Soares desejam apenas que os filhos vinguem, escapando do destino de se somar à multidão de anjinhos que povoam o cemitério da cidade. Aos seis meses da sétima gravidez, no entanto, Ivanilde nem sequer fez um exame pré-natal – fundamental para a sua saúde e a do filho que vai nascer. Conta com Deus, e não com o Estado, para cuidar de tudo. O casal só colocou três dos seis filhos na escola e não achou vaga em creche. Fabinho ficou sem estudar.

Leopoldo Silva
Fabinho, em Batalha (AL), come farinha e está fora da sala de aula

Essa semana, Maurício e Fabinho precisaram ir ao médico. Maurício foi atendido na emergência do Hospital Materno Infantil de Brasília, um dos 13 da rede pública do DF, que conta também com 62 postos de saúde. Sem médico por perto, Fabinho ficou em casa, um barraco de taipa de 15 metros quadrados fincado na paisagem marrom do Alto do Urubu, um bairro miserável no município alagoano de Batalha, a 185 quilômetros de Maceió. Estava aflito com dor de cabeça de causa desconhecida e com uma outra dor, esta sim bem familiar: a fome. O único prato do dia foi um copo com água misturado à farinha e um naco de toucinho. Não foi suficiente para nutri-lo.

Fábios e Maurícios existem em qualquer lugar do Brasil, mas na roleta-russa geográfica típica da Belíndia – a Bélgica e a Índia que convivem dentro de nossas fronteiras –, a criança que mora em Brasília tem muito mais chances de receber tratamento médico adequado, estudar e, principalmente, de sobreviver do que a que mora em Alagoas. A mortalidade infantil em Alagoas é três vezes maior do que em Brasília. E mais da metade das crianças do DF está matriculada na pré-escola, quase o dobro de Alagoas. Num país mais injusto do que pobre, um estudo intitulado “Infância Brasileira 2001”, do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), demonstra pela primeira vez como Estados e cidades diferentes oferecem chances distintas para suas crianças.

Leopoldo Silva
Hospital Materno Infantil de Brasília, um dos treze da rede pública

Chances – Ao avaliar a primeira infância – do nascimento até os seis anos – em todos os 5.507 municípios brasileiros, o relatório mostra que escolas e hospitais definem o sucesso ou o fracasso de uma geração. Uma gestante no Maranhão tem duas vezes menos possibilidades de fazer seu pré-natal adequadamente – pelo menos seis exames, como recomenda a Organização Mundial de Saúde – do que outra em Mato Grosso do Sul. A criança do Acre tem metade das chances daquela que vive em Brasília de ser imunizada contra sarampo, tétano, coqueluche, difteria e poliomielite. E dez vezes menos chances do que os paulistas de iniciar seus estudos em uma creche. Um dos Estados mais pobres do País, o Acre tem um terço de seus municípios na lista dos 100 piores lugares para uma criança crescer. Na cidade de Marechal Thaumaturgo, com 8,3 mil habitantes, não existem creches, só três em cada 100 mães fazem o pré-natal e menos de 2% das crianças foram imunizadas contra sarampo. Correndo o mapa em direção a São Paulo, um pequeno município vive o extremo oposto. Em Águas de São Pedro, com 1.720 habitantes, todas as crianças frequentam pré-escola e 80% estão matriculadas em creches.